Folha Online sinapse  
28/10/2003 - 02h52

Verbete: Elefantes e a grama pisoteada

CLÓVIS ROSSI
colunista da Folha de S.Paulo

Parece o paraíso: o maior mercado de livre comércio do mundo, com uma economia combinada de quase US$ 13 trilhões em 34 países e cerca de 800 milhões de consumidores do Alasca, nas bordas dos Estados Unidos, à Patagônia, no extremo sul da América do Sul.

Reprodução
Posta nesses termos, dificilmente uma agência de propaganda teria um produto tão suculento a anunciar como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), um conglomerado que vem sendo negociado desde 1994 e responde pelos números do parágrafo anterior.

Pena que o paraíso seja muito, mas muito, assimétrico: os Estados Unidos, um dos 34 países envolvidos na negociação, é não apenas a única superpotência remanescente no planeta como a maior economia do mundo (responde por ao menos 80% dos US$ 13 trilhões da Alca), para não falar de sua população (270 milhões de habitantes), de longe a maior das Américas.

Não é sem razão que, em recente seminário sobre a Alca realizado em Miami, Harold Robinson, cônsul-geral de Trinidad e Tobago, minúscula ilha caribenha, criou a seguinte metáfora sobre a situação dos pequenos países da região: "Nós somos a grama na negociação da Alca. Quando os elefantes estão lutando, a grama é pisoteada. Infelizmente, mesmo quando os elefantes estão fazendo amor, a grama ainda assim é pisoteada".

Os elefantes da metáfora são, em primeiro lugar, os Estados Unidos, mas também o Brasil, o segundo maior país da Alca.

No momento, os elefantes estão brigando —e brigando muito.

A briga tem inúmeras explicações técnicas e diplomáticas, mas tem igualmente —talvez acima de tudo— um forte componente político: o Brasil, ou pelo menos alguns setores de sua economia, sente-se também como grama da negociação, prestes a ser pisoteada pelo "elefante" EUA.

A verdade é que não há ainda no país um estudo completo e abrangente que diga quanto e como cada setor da economia será afetado, para o bem ou para o mal, se for concluída a Alca. Ou seja, quando caírem os obstáculos para a importação de tudo que o ser humano produz, se prevalecer a idéia norte-americana para a Alca.

A proposta dos EUA não elimina apenas as clássicas tarifas de importação, cuja média no Brasil, hoje, está em torno dos 12%. Abre os mercados americanos de serviços, cria regras que dão aos investimentos externos a mais ampla liberdade, assim como liberaliza o setor de compras governamentais (tudo o que os governos dos diferentes níveis colocam em concorrência pública).

Para não ficar como a grama dos Estados Unidos, o governo brasileiro está propondo uma Alca no formato que o jargão diplomático batiza de "três trilhos", a saber:

1 - A abertura do mercado de bens, por meio da redução e/ou da eliminação das tarifas de importação, se faria em uma negociação direta entre o Mercosul e os EUA (formato batizado de 4+1 porque são quatro os membros efetivos do Mercosul).

2 - A Alca propriamente dita ficaria limitada a regras para resolver disputas comerciais entre seus membros, tratamento especial para os países em desenvolvimento (que, na Alca, são todos, menos Canadá e EUA), e regras burocráticas para evitar que a morosidade nas alfândegas, por exemplo, iniba o comércio.

3 - Itens como acordos sobre como cada país deve tratar o investimento estrangeiro ou sobre como as compras governamentais iriam para o âmbito planetário, representado pela OMC (Organização Mundial do Comércio).

É o que o chanceler Celso Amorim chama de "Alca light", à qual os Estados Unidos respondem com uma proposta de "Alca abrangente". Mas não tão abrangente assim: itens como subsídios agrícolas e regras de defesa comercial (que o jargão cita sempre como anti-dumping) ficariam para a OMC.

Para o Brasil, eliminar o protecionismo agrícola dos Estados Unidos (e do mundo rico em geral, o que inclui Europa, Japão, Suíça etc.) é prioridade um na negociação. Trata-se de um setor que já responde por quase a metade das exportações brasileiras, altamente competitivo e, por isso mesmo, com imensa capacidade de reagir rapidamente a uma eventual redução das barreiras nos parceiros ricos.

Quanto ao anti-dumping (a defesa contra a importação de produtos a preços de custo, o dumping), o Brasil acusa os Estados Unidos de usarem-no como protecionismo disfarçado.

Cita o caso do aço: enquanto o setor era estatal, podia de fato haver algum tipo de ajuda governamental que caracterizasse dumping. Agora que todo o setor foi privatizado, não há razão alguma para barrar a entrada de aço brasileiro no mercado norte-americano, como os EUA ainda fazem.

Não são, como é óbvio, divergências triviais. Bastariam para azedar as negociações entre os dois países. Mas a elas somou-se, no mês passado, uma sigla que chegou a ter 23 membros, caiu agora para 18 e vem sendo chamada de GX, devido ao número variável de integrantes*.

Trata-se de um grupo de países em desenvolvimento criado para lutar pela liberalização agrícola do mundo rico, durante a reunião ministerial da OMC em Cancún (México), no mês de setembro.

O grupo está sendo acusado pelos Estados Unidos de responsável pelo enorme fiasco que foi o encontro de Cancún. A acusação é falsa. O cimento do grupo era apenas a discussão agrícola. Cancún fracassou quando os europeus insistiram em pôr na agenda itens como investimentos e compras governamentais que os países em desenvolvimento não estão dispostos a aceitar.

Não por acaso, esses mesmos temas reaparecem agora na raiz da divergência entre Brasil e Estados Unidos na discussão da Alca. Fica mais fácil entender a fortíssima pressão norte-americana sobre aliados do Brasil no GX —e mais fácil ainda dar razão ao cônsul de Trinidad e Tobago em Miami, quando usa a metáfora da grama pisoteada pelos elefantes, quando brigam ou quando fazem amor.

Para o Brasil, o grande problema é que o elefante adversário é imensamente maior e mais forte e não revela a menor disposição de fazer amor.

*O GX, até o dia 10, era composto por África do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Cuba, Equador, Egito, Guatemala, Índia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Filipinas, Tailândia e Venezuela.

Clóvis Rossi, 60, colunista da Folha de S.Paulo, só vê graça no livre comércio se for para trocar o Grêmio e o Fluminense pelo Palmeiras na primeira divisão.

     

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