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28/10/2003 - 03h06

Tem gosto para tudo

SUZANA BARELLI
free-lance para a Folha de S.Paulo

Degustar nada mais é do que consumir com atenção. A definição, clássica no mundo enogastronômico, pressupõe a utilização dos sentidos, o que a torna acessível a todos —ao menos teoricamente. Na prática, a história é outra.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
"O que as empresas exportadoras procuram é a experiência" - Breno Lago Teixeira, classificador de café

Para degustar uma taça de vinho (a prova mais conhecida), uma barra de chocolate, um copo de cachaça, uma xícara de chá ou de café e até um charuto, é preciso apurar os cinco sentidos, principalmente a visão, o olfato e o paladar. E treiná-los para identificar e denominar aromas e gostos que, até então, passavam despercebidos.

Isso nem sempre é fácil. Primeiro, não há cursos específicos para formar degustadores em geral, apesar do crescente interesse. Degustar é, antes de tudo, uma profissão para autodidatas. O aprendizado acontece com treino constante e com cursos rápidos, seja para os profissionais autônomos, para aqueles que provam produtos nas empresas ou, simplesmente, para quem degusta por hobby.

"Tive de aprender na raça, lendo muito e varando as madrugadas" - César Adames, degustador de charuto
"Tive de aprender na raça, lendo muito e varando as madrugadas. No início da década de 90, poucos no Brasil sabiam sobre os cubanos", lembra César Adames, que pratica a impensável degustação de charutos. Segundo ele, somente na terra do ex-fumante Fidel Castro há cursos específicos para formar profissionais capazes de avaliar um charuto a partir da análise da capa, do fluxo da fumaça, da cinza e da sua construção interna. No Brasil, a Menendez & Amerino, a maior fabricante do país, usa como degustadores os seus mais altos funcionários, que conhecem, na prática, a qualidade do produto.

"Somos quatro pessoas e degustamos para identificar as boas folhas, sugerir os 'blends' e criar produtos sempre com as mesmas características", afirma Feliz Menendez, diretor industrial da companhia. Na prova, ele chama a atenção até para o som. "As folhas têm de ter uma umidade específica, e nos certificamos disso ao entortar o charuto e ouvir um som correspondente", ensina.

Adames lembra que degustar não significa consumir tranquilamente o produto, como as pessoas fazem em seus momentos de lazer. "Após fumar um terço do charuto, já é possível fazer uma análise completa", conta. Ou seja, os degustadores aprendem a fazer a sua análise com pequenas amostras do produto e de forma técnica. Dão até notas (toda prova inclui pontuação, o que traz parâmetros e confiabilidade ao teste).

No café, por exemplo, os profissionais dão os seus pontos sem nem bebê-lo. Depois da análise visual do grão, é feita uma infusão com a água da primeira fervura e, então, são analisados o aroma e o sabor. "Colocamos o café numa colher e, com sucção, levamos o líquido às nossas papilas", explica o classificador de café José Carlos Teixeira.

Essa quantidade é suficiente para definir se se trata de uma bebida encorpada ou leve, doce ou salgada. "Se bebêssemos, não conseguiríamos degustar as 300 xícaras que chegamos a provar por dia", afirma o também classificador Breno Lago Teixeira, que, nas horas vagas, adora tomar café.

Até a década passada, o Instituto Brasileiro de Café promovia cursos para formar os seus profissionais. Com a sua extinção, uma brecha se abriu, apesar de, agora, nem sempre o diploma ser válido. "Mas, na verdade, o que as empresas exportadoras procuram é a experiência", afirma Breno Teixeira, que degusta café há mais de quatro décadas.

Experiência, aqui, significa treino —muito treino. Nos provadores de chá, o processo é mais longo. Entender as peculiaridades da Camellia sinensis requer anos de estudo, além de viagens para as regiões produtoras da China e da Índia, principalmente.

Carla Saueressig, sócia da Loja do Chá, em São Paulo, conta que os provadores da bebida começam a pensar no seu sucessor quando chegam aos 40, 45 anos. Nessa idade, eles elegem os candidatos e os treinam por um período mínimo de seis anos. Só então o aprendiz pode alçar vôos mais altos.
Atualmente, Thomas Holz, sócio da alemã Tee Gschwendner, franquia que Carla representa no Brasil, treina dois futuros provadores de chá. "É uma profissão de monge, pois não se pode comer alimentos apimentados nem beber nada alcoólico para preservar o paladar", afirma a empresária.

Degustar é também uma profissão de longo prazo. "O sucesso do provador oficial está em degustar de forma regular e constante", ensina Mário Telles, diretor da ASB-SP (Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo). Quanto mais se degusta, mais se aprende.

No caso do vinho, há a peculiaridade de a degustação não ser restrita aos sommeliers e demais profissionais do setor. Em cursos básicos e avançados, as associações dos amantes de vinho ensinam o passo-a-passo de como analisar a bebida pelas nuanças de cor, aromas, gostos e retrogostos (o sabor final na boca) também para aqueles que bebem o vinho por hobby. Um detalhe: esses degustadores informais são a grande maioria dos alunos, com porcentagem estimada em mais de 80%.

Polivalente e conhecida, a degustação do vinho é o instrumento para que os especialistas definam que garrafa colocar no cardápio de um determinado restaurante e por qual preço, ou para os importadores decidirem pela compra ou não do produto. Próximo ao vinhedo, os enólogos o provam tecnicamente como forma de definir a "assemblagem" (mistura) entre as uvas ou para acompanhar a sua evolução —primeiro nos tanques de fermentação e depois nos barris de carvalho.

Nas empresas, portanto, a degustação é uma ferramenta valiosa, capaz de garantir a qualidade constante do produto.

A Chocolate Garoto, por exemplo, promove dois tipos de degustação. O primeiro, realizado na linha de produção, prova os chocolates recém-produzidos. O segundo é um painel sensorial, que acontece duas vezes por semana, onde são degustadas até 18 amostras por pessoa. É um grupo mais eclético —com funcionários de vários setores— que prova produtos já submetidos ao teste de conservação, novos chocolates, diferentes matérias-primas, produtos em desenvolvimento e até os da concorrência.

Vanderléa Gomes Campo Dall'Orto, técnica de garantia da qualidade da Garoto, explica que os provadores, voluntários, precisam ter bom paladar e não fumar. Para pertencer ao grupo, os funcionários aprendem a reconhecer os gostos básicos e os diferentes sabores do chocolate. Num dos testes, o triangular, o degustador recebe três amostras, duas iguais e uma diferente e tem de descobrir qual é a diversa. A cada dois meses, ele é "calibrado" —prova uma amostra fora da especificação misturada com as demais e tem de conseguir reconhecê-la.

"A pessoa não pode estar com fome durante a avaliação" - Tânia Nakajima, coordenadora de desenvolvimento de produtos da Amor aos Pedaços
Na artesanal Amor aos Pedaços, a degustação reúne um grupo de dez funcionários durante o desenvolvimento do produto. Os testes são feitos três horas depois da refeição. "É o tempo suficiente para a pessoa não estar com fome, o que pode comprometer a sua avaliação, e não estar mais com o gosto da comida", ensina Tânia Tenure Nakajima, coordenadora de desenvolvimento de produtos da empresa. A prova inclui a análise visual, olfativa, do sabor e da textura. "O chocolate não pode apresentar arenosidade, por exemplo, como se fosse um leite em pó", exemplifica.

Nas bebidas, a Companhia Müller de Bebidas 51 se vangloria de ser a pioneira em sua área a investir em degustação. Na fábrica de Pirassununga (SP), a empresa mantém uma sala própria para a prova da cachaça, do conhaque e das bebidas do tipo "ice", entre outras. São seis baias separadas, onde um time de 16 profissionais, também voluntários, faz a degustação. Na prova cotidiana, cada um recebe duas séries com dois copos: em um está a bebida padrão; no outro, uma amostra do produto que será engarrafado. Ao profissional cabe reconhecer a bebida padrão.

"Vários erros entre a amostra padrão e a bebida pronta significa que a aguardente está boa, pois poucos conseguiram reconhecer as diferenças entre os lotes", explica João Jorge Chedid, gerente do programa de gestão da qualidade na empresa.

Os degustadores fazem a prova diariamente, duas horas antes do almoço. "É um desafio reconhecer a bebida pelo aroma e paladar", resume o voluntário Gerson Leando Medeiros, analista de laboratório. Na empresa há 12 anos, ele degusta há cinco anos.

A sala da 51 tem vários recursos, como copos e luz vermelhos, que impedem reconhecer a cor da bebida. "A cor influi na análise. Se a cor é mais forte, a pessoa tende a dar notas mais altas, pensando que é uma cachaça envelhecida", explica Cláudio Sanches, gerente de suprimentos de aguardente. Ou, como define Tânia, da Amor aos Pedaços, se as pessoas comem com os olhos, por que não degustariam também com os olhos?

Até a cerveja tem os seus provadores. A mestre-cervejeira Cilene Saorin cursou a disciplina de degustação na Escuela Superior de Cerveza y Malta, da Universidade Politécnica de Madri (Espanha), e atualmente trabalha no Brasil na FlavorActiV, empresa de origem inglesa especializada no conceito de gestão sensorial para as empresas cervejeiras. Isso a leva a degustar, quase que diariamente, a sua bebida preferida. Há um limite de até dez amostras por teste. São, aproximadamente, três goles por copo, o que equivale a 500 ml no total. "É uma bebida alcoólica e, após uma certa quantidade, há uma debilidade da degustação", ensina a profissional.

A degustação, aqui, derruba o senso comum dos brasileiros: nada da bebida estupidamente gelada. "A baixa temperatura mascara o sabor e a complexidade da bebida. O ideal é bebê-la entre 8oC e 14oC", ensina Cilene. Para quem quer aprender, além de fugir do geladíssimo, deve prestar atenção na qualidade da espuma, no tamanho das bolhas (quanto menores, melhor) e na cremosidade.

São os conceitos dos degustadores que estão cativando, como um hobby, os demais consumidores. "O vinho abriu as portas para o mundo da degustação", afirma Paulo Ferretti, professor de alimentos e bebidas da Universidade Metodista de Piracicaba e do Senac. O desafio, diz ele, é degustar com prazer. O convite está feito.

     

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