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28/10/2003 - 03h14

Quantas tábuas fazem um teatro

CYNARA MENEZES
free-lance para a Folha de S.Paulo

No princípio, havia uma fábrica de vassouras abandonada, um ator de volta às origens e nenhum teatro em atividade na pequena São João da Boa Vista, com cerca de 80 mil habitantes, a 240 km de São Paulo. Um anúncio, então, surgiu no "reclame" (a seção de anúncios) do jornal da cidade: procuram-se pessoas interessadas em trabalhar com teatro. Mais de 40 apareceram; quatro foram selecionados para aprender o que é atuar e —disto não sabiam— também para colocar a casa de espetáculos em pé.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Jorge Luís Braz, com boneco de sua companhia
Tábuas de pínus e madeiras compensadas foram serradas, pregadas, pintadas e transformadas em arquibancadas e palco. Ao mesmo tempo, o ator (agora diretor) Jorge Luís Braz, 37, realizava as primeiras oficinas com seus alunos-marceneiros, até a estréia de "Em Busca do Desejo", a peça de inauguração, em 1999. Na platéia, apenas seis pessoas, sob um calor infernal, o que obrigava o grupo a jogar baldes de água no telhado, para refrescar um pouco o ambiente.

De lá para cá, a instalação de ventiladores de teto não foi a única transformação no Teatro de Tábuas, que adotou o nome em homenagem à sua origem carpinteira. Uma nova sede foi aberta em uma casa maior, onde hoje funcionam oficinas de teatro, dança, artes plásticas, música, áudio e vídeo. E mais de 150 mil espectadores nesses últimos quatro anos puderam assistir a cerca de 80 espetáculos, montados pela companhia ou trazidos da capital paulista e de outras cidades do país.

"Nosso principal objetivo é formar platéias. Se toda cidade igual à nossa tivesse um projeto assim, nenhuma companhia teatral do país ficaria parada nos finais de semana", diz Braz. "O interior é uma enorme platéia em potencial."

Nascido em São João da Boa Vista, com passagens por São Paulo, Rio e Recife, o ator tem como maior referência o escritor pernambucano Ariano Suassuna. "Suassuna tem tudo a ver com o que fazemos aqui: filtrar a influência estrangeira, formar pessoas, ajudá-las a descobrir sua própria identidade. Só não somos tão radicais."

O Teatro de Tábuas funciona à base de parcerias. Para os espetáculos, por exemplo, há os 327 sócios-contribuintes, que compram, todos os meses, dois ingressos —R$ 10 cada um. Convênios também foram firmados com três prefeituras da região: Santa Cruz das Palmeiras, Tapiratiba e Santo Antônio do Jardim. Os governos municipais compram um projeto que inclui a capacitação de professores em arte-educação, oficinas permanentes para crianças com famílias de renda per capita até R$ 90 e ingressos para os alunos da rede pública assistirem aos espetáculos.

Em troca, muito serrar, martelar e pintar outra vez: o Teatro de Tábuas se responsabiliza pela construção de um teatro na cidade com a qual é firmado o convênio. Assim foi em Santo Antônio do Jardim, município com pouco mais de 6.000 habitantes. Um clube abandonado teve seu telhado reformado, pisos trocados, espaços redimensionados e pintados. Hoje, é um teatro modesto, inaugurado no final do ano passado e onde já foram apresentados seis espetáculos.

"Depois do teatro, São João da Boa Vista deixou de existir como limite para mim", diz o ator Daniel Salvi, 24, integrante do primeiro grupo que ajudou a levantar o teatro. Daniel queria ser jogador de futebol. Um pé quebrado duas vezes no mesmo lugar o fez mudar de planos. "O teatro representou um novo norte. Esporte também é legal, mas eu precisava passar no teste de um time para ganhar o mundo. Aqui, posso ser vendedor de coxinha ou ator, mas o mundo eu já ganhei."

Também da primeira turma de atores, Tiago Kávyla, 27, conta que descobriu outros lados de sua personalidade ao entrar para o teatro —parte da concepção de Jorge Luís Braz prega que é preciso apresentar todas as dificuldades para só aí superá-las, sempre. A de Tiago era justamente pegar no pesado durante a construção da primeira sede, ainda na fábrica de vassouras.

Ele também conta ter sido uma pessoa insegura e pouco falante, que foi se tornando mais confiante à medida que descobria habilidades não só como ator mas também como cenógrafo e figurinista. "O teatro é uma arte completa, porque reúne tudo: literatura, música, dança. Traz a possibilidade de viver outras vidas, e isso é mágico. Além disso, a oratória desinibe, socializa. O trabalho de auto-estima que é feito vai servir para a vida inteira", defende o diretor.

Com a formação de platéias como meta, nem só de espaços fechados vive o Teatro de Tábuas. Já viraram tradição na cidade os autos à Ariano Suassuna, montados pelas ruas da cidade no Dia de Finados e no Natal. O "caminhão", como é chamada a velha jardineira (o ônibus) do grupo, volta e meia reformada, é o palco do auto natalino. No "Auto da Morte", um funeral, com direito a caixão, defunto e tudo o mais, percorre a cidade declamando poemas mórbidos. As carpideiras debulhando-se em lágrimas no trajeto já chegaram a confundir muita gente.

Entre julho e agosto passados, o Teatro de Tábuas ampliou seus próprios horizontes e levou para São João da Boa Vista o 1º Congresso de Arte-Educação, com palestras de especialistas de várias partes do país, shows e exibições de teatro e cinema. No final de novembro, um novo espetáculo pretende viajar pelas capitais do Nordeste, "Eros e Kronos - Um Auto de Amor Jovem", com texto de José Ernesto Bologna.

Se bons espetáculos da capital já estiveram em São João da Boa Vista, a recíproca não é verdadeira para o teatro feito no interior. "Para São Paulo, só vou levar quando nosso grupo estiver em um nível artístico compatível ao das companhias da capital", afirma Braz. Segundo o diretor, ainda há um bom caminho para ser serrado, martelado e pintado até chegar lá.

     

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