Folha Online sinapse  
25/11/2003 - 03h02

Gilson Schwartz: Professores do Taboão, uni-vos

GILSON SCHWARTZ
colunista da Folha de S.Paulo

O "taboão" não vem de "tábua grande", mas de "taboa", espécie vegetal com que se fazem esteiras. E o erre retroflexo? Caipira, caipora, mistura de índio e colonizador, grande sertão nas veredas paulistas...

Naquele dia, pela manhã, os corpos foram localizados. Taboão da Serra, Embu-Guaçu, Juquitiba. Em volta do espaço urbano, supostamente civilizado, nomes criados por nativos. É a periferia barbaramente modernizada, onde o crime nem sempre está organizado. O caipira falava "tarrde", o mano carrega no "firrmeza".

Naquela noite, uns 200 professores de Taboão da Serra, Embu-Guaçu, Juquitiba enfrentavam a distância e o calor para se reunirem num auditório da USP, para a palestra "Parceiros do Rio Bonito: Releitura Digital". A herança uspiana filtrada pela internet batia de frente com o choque pelo assassinato da filha de um amigo.

Se para cada pai e mãe dos jovens assassinados restava a dor da perda, para nós, professores, havia também a dor de outra ausência, porque o outro jovem, assassino e estuprador, não estava em nossas escolas. Restava para nós a doída sensação de que mesmo entre os que frequentam as nossas escolas o diálogo é truncado. Teríamos de ser terapeutas, pais que inexistem nas casas de Taboão, Embu-Guaçu e Juquitiba.

Projetadas no telão, as imagens de dois "nhôs", o caipira e o sociólogo da USP. Em "Parceiros do Rio Bonito", o mestre descobriu no caipira paulista os traços autênticos de uma cultura ancestral que se definia pela exclusão. Ele define o que no caipira é "autêntico" como produto "que representa o seu modo de ser".

Qual é o caminho para construir essa representação fiel ao nosso modo de ser? Antonio Candido descobriu no caipira uma solidariedade em que o mais primitivo reage ao mais avançado. Os restos do colonizador misturado ao nativo inauguram uma promessa de inteligência coletiva. Será que ela é possível hoje, parcerias por meio das mais avançadas tecnologias? Quais serão os parceiros de um rio que já virou córrego imundo, sem saneamento e, agora, manchado de sangue infantil?

Fechamos a noite com depoimentos dos professores. Redescobrimos em Taboão, Embu-Guaçu e Juquitiba o reisado, as festas do Divino. Exorcizamos o medo invocando a piada do caipira. Chega o professor, fazendo pesquisa de campo, perdido no mato. Avista o caipira, que não vem o assaltar ou estuprar, mas fica quieto, sentado no canto. O professor pede ajuda: "Qual é o caminho para a cidade?". "Sei não." "Como faço para chegar a uma fazenda?" E nada do caipira. O professor esbraveja: "O senhor é um ignorante, não sabe de nada?". A resposta é curta e inteligente: "Ieu sô inguinorante, mas quem tá perrdido é o sinhô!".

Professores do Taboão, humanos, unamo-nos! Há mais semelhanças entre as novas redes digitais e o velho mutirão caipira do que supõem as nossas vãs tecnologias. Antes que estejamos todos perdidos.

Gilson Schwartz, 43, é diretor acadêmico da Cidade do Conhecimento, da USP, e professor do módulo do programa Teia do Saber, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, para professores de Taboão da Serra, Embu-Guaçu e Juquitiba.
E-mail: schwartz@usp.br

     

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