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25/11/2003 - 03h04

Cultura à flor da pele

ANTONIO ARRUDA
enviado especial a Salvador

No último dia 20 de novembro comemorou-se o Dia da Consciência Negra. Mas, para um grupo de jovens de Salvador, todo dia é dia de despertar em milhares de crianças negras o orgulho pela raça a partir do resgate da estética afro. Eles chegam às escolas munidos de panos coloridos, palhas, búzios, miçangas, tesouras, alfinetes, navalhas, batom, rímel e uma série de outros materiais.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Raquel Lima, da ONG Núcleo Omi Dùdú, faz turbante afro na aluna Taislane Silva de Carvalho

À espera do pessoal da ONG Núcleo Omi Dùdú, alunos do ensino fundamental da capital baiana (90% deles, da primeira à quarta série), todos da rede pública municipal, têm uma aula diferente: os uniformes escolares dão vez a roupas típicas africanas; os cabelos são trançados e enfeitados com fitas coloridas; a maquiagem se harmoniza com os traços fortes do rosto.

A ação, que só neste ano beneficiou cerca de 12 mil crianças de 55 escolas da periferia de Salvador, faz parte do programa "Escola, arte e alegria - Sintonizando o ensino municipal com a vocação do povo de Salvador", criado oficialmente em 1999, mas realizado informalmente desde 1997. "Trabalhar a estética dessas crianças é uma forma rápida de resgatar a auto-estima. Trabalhamos a estética para falar de ética e cidadania", defende a secretária de Educação da cidade, Dirlene Mendonça.

A ONG Núcleo Omi Dùdú é uma das 75 entidades que fazem parte do Fórum de Parceiros da Educação, que a prefeitura estruturou em 2000.

A Oficina Multicultural Afro-Brasileira realizada pela ONG com crianças começou há dois anos. Antes, o trabalho da Omi Dùdú, que existe há 15 anos, era voltado para a capacitação de jovens na atuação como cabeleireiros, maquiadores e estilistas do estilo afro. Com esse projeto, eles ganharam em 2001 o prêmio de melhor trabalho na área de capacitação profissional em estética de Salvador, concedido pelo programa Capacitação Solidária.

Em uma das escolas onde a entidade realizou a oficina, a estudante Ana Paula Souza de Jesus, 9, sorria enquanto as "oficineiras" trançavam seus cabelos e maquiavam seus lábios. Espiando no espelho de canto de olho, disse com firmeza: "Eu tenho muito orgulho do meu cabelo, da minha boca. Gosto de usar trança solta e me sinto bonita. Mas antes eu não me achava muito bonita, não. Acho que é porque eu não gostava quando me chamavam de cafezinho".

"Cafezinho" é um dos apelidos correntes nas salas de aula. "Picolé de betume", "cabelo duro", "nega cor de petróleo" são outros que, por contraditório que pareça, são lançados de crianças negras para crianças negras. "Estamos diante de uma questão de falta de identidade. O aluno negro xinga o colega negro porque não se identifica com sua cor, seu cabelo, seus traços", diz José Roque Correia Lima, 32, diretor administrativo da ONG. "Isso porque 88% da população da cidade é negra. Imagine se não fosse assim", diz.

Gustavo Vieira dos Santos, 11, e Matheus Santana Nascimento, 10, assumem que chamavam a amiguinha de "negra com cabelo de Assolan [uma marca de palha de aço]". "Mas daí a menina da Omi Dùdú perguntou se eu não era negro também e disse que o cabelo do negro não é ruim nem duro, mas crespo, então parei de xingar", conta Matheus.

O diretor da escola União Comunitária, Renalvo Lemos Carvalho, 35, diz que alguns alunos ficaram uma semana com o penteado. "Até os professores passaram a encarar melhor a questão racial."

Mas essa consciência não é encontrada facilmente pela Omi Dùdú. Pelo contrário: entre um trançado no cabelo e uma amarração no tecido, o que se ouvem são relatos de violência doméstica, racismo, dificuldade de aceitação. E o que se vê, muitas vezes, é um clima de abandono: nos relatórios que a ONG prepara, são apontados sérios problemas de falta de higiene e de descuido com a saúde. "Nos deparamos com crianças com piolho, com o couro cabeludo machucado pelos produtos químicos ou até mesmo carecas", diz Lima.

Justamente por isso o trabalho parte da questão estética para debater outros assuntos. Nas três horas, em média, que a entidade passa em cada escola, acontecem duas palestras: uma sobre racismo e outra sobre cuidados com o corpo. Depois de ver o resultado do trabalho, também a Secretaria da Saúde de Salvador passou a apoiar o projeto.

Em 2004, a ação deve se expandir, já que o Núcleo da Família Omi Dùdú, criado neste ano, vai começar a funcionar. "Há muitos casos de pais que vieram nos procurar, perguntando: 'Que história é essa de fazer trança no cabelo da minha filha? Quer que a chamem de neguinha?', ou então dizendo que, com o cabelo desenhado, o filho ficou parecendo 'um marginal'", conta Lima.

Taislane Silva de Carvalho, 10, conta que a mãe sempre fez tranças em seu cabelo, mas "não tão bonitas como essas". Das palavras da menina, dá para deduzir que sua mãe não vai procurar a ONG para reclamar do penteado "de neguinha" da filha. "Acho que minha mãe vai adorar. Queria que ela aprendesse a fazer esses turbantes também."

O jornalista Antonio Arruda viajou a convite do Núcleo Omi Dùdú.

     

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