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16/12/2003 - 02h56

Verbete: Violência, punição e lei

LUÍS FRANCISCO CARVALHO Fº
articulista da Folha de S.Paulo

A palavra de ordem, agora, é reduzir a maioridade penal. Para que infratores com menos de 18 anos possam ser punidos e encarcerados como qualquer criminoso comum.

Reprodução
A proposta surge como tábua de salvação e com apoio popular. Uma pesquisa de opinião divulgada na semana passada indica que 88,1% dos entrevistados apóiam a responsabilidade penal aos 16 anos.

Aviso aos navegantes: instituir pena de morte, prisão perpétua ou reduzir a idade dos criminosos imputáveis, sugestões que aparecem sempre que se divulga a ocorrência de algum delito espetacular, não resolverá o problema da violência e da impunidade no Brasil. A raiz do crime é mais profunda, e medidas repressivas serão inócuas.

Outro aviso: a violência brasileira tende a crescer ainda mais. Isso só começará a se reverter quando mudar a lógica política dos governantes, que insistem em governar para as elites, com um ou outro gesto de generosidade demagógica ou de esmola oficial, como o Fome Zero.

O argumento para a mudança é simples. A juventude não é mais a mesma de antigamente, vivemos num mundo globalizado, e garotas e garotos com menos de 18 anos, que votam para presidente da República, têm "discernimento" para distinguir entre o bem e o mal e podem, sim, responder plenamente pelos seus atos.

Por outro lado, se países mais desenvolvidos punem seus jovens implacavelmente, como um delinquente maior, por que no Brasil deve ser diferente? Não faltam relatos de condenações perpétuas nos EUA e na Inglaterra de crianças de 11, 12 e 13 anos que, sabe-se lá o motivo, mataram alguém. O que todos esquecem é que, nesses países, menores permanecem destinatários de uma atenção especial.

A discussão deve ser pautada pela racionalidade, não pela emoção. Em primeiro lugar, é importante saber que, no Brasil, nem sempre foi assim. O marco divisório da punição criminal aos 18 anos e de um tratamento diferenciado para infratores menores aparece em 1927. Em 1940, quando entra em vigor o atual Código Penal, o princípio se consolida.

O Código Criminal do Império, de 1830, estabelecia a idade de 14 anos para que alguém fosse julgado. Para o menor de 14, existia a possibilidade de recolhimento à "casa de correção" até completar 17 anos, se ficasse provado que, ao praticar o delito, ele agiu com "discernimento". O fator "discernimento" permaneceria no código de 1890. Garotos entre 9 e 14 anos podiam ser punidos. Já o menor de 9 anos era considerado sempre inimputável.

Por que a lei brasileira estabelece a responsabilidade penal aos 18 anos? É uma opção técnica e arbitrária. Poderia ser 17, 16 ou 19. A lei apenas presume que o menor de 18 anos não é responsável pelos seus atos, ainda que possam existir menores plenamente desenvolvidos e maiores não tão desenvolvidos assim —o que, aparentemente, não tem nada a ver com a sofisticação do "mundo moderno" nem com a televisão. Como toda presunção legal, seu grau de acerto não será, jamais, absoluto.

O que se pretendeu com o estabelecimento de um marco —no caso, aos 18 anos— foi a eliminação de critérios subjetivos e falíveis para aferir o tal "discernimento" da pessoa. Institucionalizou-se, também, o princípio de que jovens merecem tratamento distinto, mais voltado para educação do que para a expiação da culpa. Ainda em formação —ou alguém dirá que jovens de 18 anos estão plenamente formados?—, o jovem infrator é, em tese, mais suscetível a programas de recuperação e deve ser protegido do sentimento de vingança que habita a sociedade.

Uma questão controvertida relacionada com a proposta de mudança diz respeito a um suposto impedimento constitucional, já que a Carta de 88 estabelece (artigo 228) que "são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos". Como a Constituição (artigo 60, parágrafo 4º) garante que "direitos e garantias individuais" não podem ser abolidos, há quem pense que o marco de 18 anos é uma "cláusula pétrea" e, portanto, imutável. Mas, como sempre acontece no admirável mundo dos juristas, sempre haverá especialistas a favor e contra. E, convenhamos, historicamente, a única "cláusula pétrea" que vigora no país é a da exclusão social.

O problema não está em mudar a lei, como deseja a maioria da população, cada vez mais assustada. Poderíamos ter um sistema prisional mais humano e eficiente com a menoridade penal reduzida para 16 ou 11 anos.

O fato é que hoje menores de 18 anos são internados na Febem. Vivem amontoados, na mais absoluta miséria, são vítimas de tortura, são tratados como bandidos, e o poder público, além de escondê-los de nós, não desenvolve um projeto eficaz de reintegração. Quando adquirem a maioridade, passam por um pequeno intervalo de liberdade, sem acompanhamento, para, depois de um assalto, conhecer os rigores do sistema prisional em si.

O que se pretende é ingênuo e cruel. Imagina-se que a mudança da lei será capaz de eliminar dos cruzamentos a presença das crianças e dos jovens que tanto incomodam os nossos motoristas. O que os políticos querem, além dos ganhos eleitorais, é desafogar a Febem para que o Estado não perca mais tempo fingindo que trata adolescentes como eles deveriam ser tratados.

Reduzir a maioridade para 16 anos, nesse contexto, é jogar na vala comum da delinquência jovens que poderiam ter a formação dirigida.

As cadeias já estão apinhadas de gente. Os governos não conseguem separar criminosos primários de criminosos reincidentes nem conseguem separar gente que é efetivamente perigosa de gente que não oferece risco social. Misturar no absurdo ambiente das prisões garotos pobres e bandidos de verdade, maduros, é o passo que falta para a consagração do apartheid brasileiro.

É óbvio que existem menores perigosos, e há um sentimento de que a lei não é suficiente para a sua contenção. Sempre houve e sempre haverá maníacos de pouca idade por aí, matando alguém sem motivo aparente. A lei pode até ser modificada, para que, em casos especiais, possa existir uma medida de segurança capaz de impedir o seu retorno ao convívio social, enquanto perdurar o perigo.

O que não faz sentido é o Brasil renunciar ao dever de dar um tratamento diferenciado a jovens que, apesar de delinquirem, merecem investimento, e não punição.

Luís Francisco Carvalho Filho, 45, é advogado, consultor e articulista da Folha de S.Paulo.

     

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