Folha Online sinapse  
16/12/2003 - 02h58

Perfil: O colhedor de sonhos

CAROLINA CHAGAS
free-lance para a Folha de S.Paulo

Por que o adolescente que sai da Febem muitas vezes acaba voltando? O que leva esse ex-interno a provocar uma situação que mais uma vez causará a privação de sua liberdade? Para responder a perguntas como essas, o Projeto Quixote, do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, a Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) e a Universidade McMaster, do Canadá, uniram-se em uma parceria em agosto passado.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Lescher com jovens do Projeto Quixote

Durante aproximadamente dois anos, 190 jovens que deixaram os muros da Febem para voltar ao "mundão" —forma como eles mesmos definem o lado de fora da instituição— serão o objeto de um estudo conjunto dessas três instituições. O resultado do trabalho deverá inspirar políticas públicas que busquem, de alguma forma, devolver a dignidade desses jovens, para que eles não repitam pequenos ou grandes delitos.

É nisso que acredita o psiquiatra da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Auro Danny Lescher, 41. Coordenador do Projeto Quixote, ele é, há sete anos, a cabeça e o coração de ações como essa, cuidadosamente bordadas para recuperar jovens e crianças em situação de risco.

Raio-X

Nome: Auro Danny Lescher
Idade: 41 anos
Formação: medicina, psiquiatria e psicanálise
Profissão: psicoterapeuta, educador e consultor em empreendedorismo social
Família: casado com Bettina, 35. Tem três filhos: Théo (5), Ian (2) e Nina (um mês)
Hobbies: escrever, correr e saborear a vida em família
Livros de cabeceira: "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes, "Lógica do Sentido", de Gilles Deleuze, e "La Vie en Close", de Paulo Leminski
Sonho: "Que meus netos vivam numa sociedade mais justa"


Atento à máxima cunhada pelo educador Paulo Freire (1921-1997) —de que criança gosta de "boniteza"— e convencido de que o problema é social, não clínico-hospitalar, ele concebeu em 1996 o Projeto Quixote. Hip hop, grafitagem, vídeo, teatro e capoeira são algumas das matérias-primas das oficinas das quais participam crianças e jovens que "vivem" na rua. Nesses espaços, eles são acolhidos, abaixam as armas usadas para sobreviver na selva de pedra e voltam a ter 7, 8, 12 anos e a confiar em alguém. Como uma consequência natural desse envolvimento, acabam contando a alguns dos 40 profissionais ligados ao projeto (médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familiares, educadores, advogados e artistas) seus problemas e angústias e, com eles, buscam caminhos para resolvê-los.

Cerca de 70% das crianças atendidas nas duas casas que o projeto tem atualmente na Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo, são encaminhadas por instituições que também trabalham com crianças e adolescentes em situação de risco. O resto acaba chegando por indicação dos próprios adolescentes atendidos. O número total de participantes é flutuante porque muitas crianças e jovens desistem e acabam voltando às ruas no meio do processo.

A entrada no Quixote é sempre via uma oficina. "Elas são uma casquinha, a superfície de adesão, um espaço para a criança se expressar e mostrar quais são suas angústias", conta a pediatra Fátima Diniz Rigoto, 37, uma das coordenadoras do projeto. Ao lado de Lescher desde a faculdade, a pediatra fala com muito carinho do "psiquiatra" —forma como é chamado pelas crianças e pelos adolescentes da instituição. "Ele é um visionário, o paizão do Quixote, o idealizador do projeto e a pessoa a quem nós e as crianças recorremos sempre", diz.

"Quando conseguimos estabelecer um vínculo, eles voltam a ser crianças", afirma Lescher. Depois de lidar com aproximadamente 2.500 crianças e jovens em situação de risco no Projeto Quixote, Lescher está cada vez mais convencido de que esses jovens querem oportunidades igualmente atraentes à liberdade que encontram nas ruas.

"O jovem tem de se sentir protagonista de sua ação, pertencente a um grupo que lhe restitua sua função social de gritar", afirma Lescher. "Não adianta criarmos centros de desintoxicação. Uma porcentagem mínima precisa de remédios e de tratamento desse tipo. Eles precisam de oportunidades para se expressar, para extravasar a juventude que brota neles", continua. "Não podemos medicalizar uma questão social."

Lescher tem segurança ao afirmar isso. Quando lançou o Quixote, pretendia reabilitar crianças envolvidas com drogas. A prática mostrou que a droga é apenas um elemento das ruas. Ao deixar a rua, a maior parte das crianças perde o interesse pela droga. O contato constante com os jovens marginalizados evidenciou a ele que "vivemos em um mundo esquizofrênico, de incluídos e excluídos". "A melhor forma de aproximar esses dois mundos é a arte", diz.

Participante ativa do outro lado desses dois mundos, a professora de ética e cidadania do colégio Santa Cruz e presidente da ONG Centro de Profissionalização e Apoio ao Emprego de São Paulo, Gilda Pompéia, 42, concorda com Lescher. Há quatro anos, ela tutora alunos do colégio que trabalham voluntariamente no Quixote. "O trabalho exerce um fascínio nos nossos alunos, e quase sempre há um sorteio para eleger quem vai trabalhar com eles", conta.

Gilda conheceu o trabalho de Lescher em 1996, quando assistiu a uma palestra sua sobre prevenção contra drogas. "Sei quanto custa recuperar um jovem e acho que a ação do Quixote é a forma mais digna e barata de fazer isso", diz ela, que lamenta a falta de atenção do governo a esse trabalho.

De voz grave, discurso seguro, Lescher é um homem convicto. Em sua fala, muitas vezes aparecem palavras como "pesquisação" ou "mentabolização". O sufixo "ação" é comum tanto em seu vocabulário como em sua rotina: além de coordenar o Quixote, ministra uma disciplina optativa no curso de medicina da Unifesp —o programa propõe-se a resgatar o lado humano dos profissionais, convidando-os a mergulhar por três meses em lugares como o Quixote ou uma aldeia indígena—, atua como consultor de outros projetos e ainda clinica como psiquiatra e psicoterapeuta em uma sala tranquila na Vila Mariana.

"Não me interessa a carreira universitária formal, me interessa criar uma universidade como um agente transformador social", diz Lescher, que tem muita preocupação em não transformar o trabalho do Projeto Quixote em uma franquia. Para ele, cada região tem suas expressões artísticas, que devem ser descobertas e oferecidas por meio de oficinas aos jovens em situação de risco. "Quando comecei, morria de inveja do Projeto Axé, que tinha aquele universo musical muito ligado ao negro da Bahia. Mas encontrei meu ouro na periferia de São Paulo, o hip hop."

Trabalhar com jovens que respondem rapidamente a estímulos e progridem fez de Lescher uma pessoa otimista. "Sou um observador da sociedade e, apesar de achar o ser humano um produto muito mal acabado, acredito que ele tem evoluído positivamente."

Além de dedicado ao trabalho, Lescher define-se como marido apaixonado da pediatra Bettina (também da equipe do Projeto Quixote). Pai de dois meninos (Theo, 5, e Ian, 2) e feliz com a chegada da primeira menina da família, Nina, de um mês, diz que foge com frequência com a família para um fim de semana prolongado no litoral norte de São Paulo.

Como consegue trabalhar tanto e ter qualidade de vida em família? "Meu trabalho é nutritivo", diz ele. "Sempre acreditei no que fiz. Quero para mim o que digo para os outros fazerem."

A dedicação à família ele herdou da mãe, Ruchel, de quem fala com carinho. Filho mais velho e primeiro neto dos dois lados de uma família judia, ele nasceu com um pé torto. Inconformada com o destino, sua mãe saiu em busca de uma solução e, durante anos, levou o primogênito ao Pavilhão Fernandinho Simonsen, a enfermaria de cirurgia infantil ortopédica da Santa Casa de São Paulo, onde um ortopedista engessava o pé torto de Lescher para corrigir o problema congênito. "Por muito tempo, todo mês eu via aquelas crianças com imensas deformações esperando, como eu, por tratamento", lembra.

O problema foi totalmente superado, e a mãe de Lescher até hoje, todo ano, organiza uma festa para as crianças da enfermaria. "Ela prometeu que, se eu me curasse, faria uma festa ali uma vez por ano", diz. A preparação da festa, sempre muito colorida e com brinquedos, desenvolveu em Lescher uma intimidade com crianças e com a arte.

Lescher fez dois anos de engenharia antes de descobrir que a psiquiatria era sua vocação. "Um dia, numa aula de topografia, mapeando um terreno imenso, comecei a mapear a mim mesmo —já fazia psicoterapia há anos. Percebi então que meu negócio era a topografia da subjetividade. Larguei a engenharia e fui estudar medicina da alma", afirma.

Antes de se envolver no Projeto Quixote, Lescher também coordenou o Grupo Biruta de Artes Cênicas, em Santos, que busca melhorar a qualidade de vida de pacientes psiquiátricos, crianças em situação de risco e pessoas da terceira idade por meio do teatro. "Hoje, não faço mais parte da rotina do trabalho, mas assisto a distância", diz, sem disfarçar o orgulho.

Depois de viver o que considera metade de sua existência, Lescher se diz atualmente no alto de um morro imaginário, orgulhoso do seu passado e acreditando em um futuro promissor pela frente. Pensa em começar a investir em outras searas. "Fiz terapia muitos anos. Atualmente, passei a escrever, como uma forma de me analisar. Acho que tomei gosto pela coisa", diz o psiquiatra, indicando, quem sabe, a direção de um novo caminho.

     

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