Folha Online sinapse  
16/12/2003 - 03h14

Pela identidade nacional

RICARDO BONALUME NETO
enviado especial a Dili (Timor Leste)

O mais interessante laboratório pedagógico no mundo hoje chama-se Timor Leste ou Timor-Lorosa'e, um país com pouco mais de ano e meio de vida independente, com área menor que Sergipe e apenas 830 mil habitantes.

Ricardo Bonalume Neto/Folha Imagem
Estudantes em frente ao busto de duque de Caxias, em escola em Dili

Educar em Timor significa também, e principalmente, cimentar uma identidade nacional. Nos próximos anos, a própria independência do país dependerá da educação. Os objetivos são tornar o país "intelectualmente autônomo e socialmente mais equilibrado", conforme declarou o ministro da Educação, Cultura, Juventude e Desporto, Armindo Maia, durante o 1º Congresso Nacional de Educação, realizado em Dili em outubro passado.

Até 1975, Timor Leste era um exótico resquício do primeiro império colonial europeu na Ásia. Em dezembro do mesmo ano, diante da retração do império português —que passava por um momento de transição política, o fim da ditadura—, a Indonésia invadiu o território.

A identidade dos timorenses foi forjada então em quase um quarto de século de luta contra o invasor. Ventos democráticos na Indonésia permitiram, em 1999, a realização de um referendo para que a população fizesse a escolha entre a independência ou a continuação da anexação, mas com maior autonomia. Milícias pró-Indonésia começaram uma campanha de terror. A destruição foi generalizada, e uma intervenção militar internacional restabeleceu a ordem, em setembro do mesmo ano.

Quatro em cada cinco escolas foram destruídas, então. A primeira tarefa dos administradores da ONU foi reconstruí-las. A escola primária número 4 do bairro de Bemori, em Dili, por exemplo, teve vários edifícios vandalizados. Ela foi em parte reconstruída pelos soldados brasileiros dos pelotões de Polícia do Exército. Hoje, a escola se chama Duque de Caxias e tem um busto em bronze do patrono do Exército na entrada, em homenagem ao país que ajudou a reconstruí-la. O Brasil, que tem em comum a história colonial, é apenas um dos países que têm ajudado Timor a se reerguer.

Uma das heranças do período da ocupação indonésia foi a língua, o bahasa-indonésio. Durante os quase 25 anos, 20% dos professores do ensino básico e 80% dos professores da quinta à oitava séries eram indonésios. Ou seja, após a independência, além de reconstruir centenas de escolas, o governo também tem de contratar novos professores.

Hoje, o maior problema é conseguir realizar a substituição da língua indonésia pelas duas línguas oficiais do novo país, tétum e português, no currículo escolar. Muitas escolas ainda não dão aulas nessas línguas por falta de opção —ou seja, de professores. A escola Duque de Caxias é uma exceção. Uma pesquisa do Banco Mundial revelou que, em 2001, 46% das crianças tinham aula em bahasa-indonésio, 47% em tétum e 7% em português.

Timor Leste pode ser um país pequeno, mas é uma verdadeira babel. Ali são faladas 16 línguas —há quem as conte 31, somando dialetos. O tétum é entendido por 80% da população. Perto da metade fala bahasa-indonésio. O português, que se estimava falado por 20% dos habitantes em 1975, hoje é falado por apenas 5% dos timorenses.

O tétum, a língua que permite a comunicação entre a maioria dos timorenses, tem boa parte do vocabulário vindo do português, especialmente as palavras técnicas —as duas línguas vivem um diálogo de 400 anos.

"Nunca estudei em Portugal, mas defendo a língua portuguesa. Esta nacionalidade ainda é frágil. O que une Timor Leste é a história da colonização", diz José Ramos-Horta, ministro de estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. "Assim como as novelas brasileiras influenciam o português mesmo em Portugal", diz ele, "nós também vamos influenciar a língua portuguesa."

A defesa das línguas oficiais também se faz na academia. "O ensino das duas línguas oficiais deve ser simultâneo desde o início da instrução primária", diz Benjamin Corte-Real, reitor da Until (Universidade Nacional de Timor-Lorosa'e), que é linguista. A Until, fundada em 2000, pretende, em cerca de dois anos, substituir o indonésio pelo tétum. Já existem cursos em português —cerca de 500 estudantes têm aulas na língua, o que representa aproximadamente 10% do total.

Há uma compreensível resistência ao português nos jovens universitários. "Esses estudantes temem que o maior uso do português cause algum tipo de obstáculo à sua realização pessoal", diz Corte-Real.

Uma maneira de chegar aos jovens e vencer essa resistência está sendo desenvolvida em forma de projeto por uma dupla brasileira. Regina Helena Pires de Brito, professora da Universidade Mackenzie, de São Paulo, e a jornalista Rosely Forganes, autora de um livro sobre Timor, tiveram a mesma idéia: usar a MPB para difundir o português. O projeto, que foi encampado pela USP, deverá levar universitários brasileiros a Timor Leste em 2004, por períodos de seis meses, para dar aulas de português, por meio da música, a jovens.

Rosely e Regina já convidaram o presidente do país, Kay Rala Xanana Gusmão, para cantar na primeira aula. "Vou tentar, mas acho que vou afugentar as pessoas", brincou o presidente.

O jornalista Ricardo Bonalume Neto, 43, viajou a Timor Leste por cortesia do Ministério da Defesa, a convite do Exército e a bordo de aeronave da Força Aérea Brasileira.

     

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