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27/08/2002 - 02h51

11 de setembro: sob nova perspectiva

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
especial para a Folha

O primeiro aniversário dos atentados terroristas contra o Pentágono e o World Trade Center, no próximo dia 11, já está provocando nova enxurrada de produtos culturais. A primeira torrente foi motivada pela própria tragédia, varreu dezenas de países, mas não trouxe muito que ajudasse a compreender ou explicar as suas causas, consequências ou mesmo as circunstâncias que a possibilitaram.

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É de esperar que a passagem do tempo, ainda insuficiente para que se possa ter uma boa perspectiva histórica, seja um componente novo capaz de ajudar a elevar a qualidade da reflexão intelectual e artística a respeito dos fatos que abalaram tão profundamente a psique coletiva dos americanos e, com menos intensidade, do Ocidente e do mundo inteiro.

A primeira reação foi, justificadamente, de espanto e comoção. Jornalistas, em meios de comunicação de massa, tentaram noticiar e interpretar os acontecimentos. As dificuldades para lidar com a catástrofe ficaram claras desde o início. Era complicado entender por que aquilo havia ocorrido —tanto os motivos conjunturais (como os sistemas de segurança e defesa da única potência militar do planeta podiam ter se mostrado tão ineficientes, por exemplo?) quanto os "estruturais" (que razões tão poderosas poderia um grupo de homens ter para sacrificar sua vida na destruição de milhares de outras num ataque em tempo de paz formal?).

No princípio, a cobertura jornalística pelos meios de comunicação americanos foi surpreendentemente comedida e acrítica. Havia um clima de religiosidade, em que qualquer ação que sugerisse obtenção de lucro à custa da desgraça coletiva seria condenada como profana. Evitou-se a divulgação de imagens que pudessem ser consideradas chocantes demais, suspenderam-se durante dias os anúncios comerciais e os programas não jornalísticos, instalou-se uma vigília eletrônica nacional, em que todos falavam em voz baixa e escreviam em tom respeitoso.

Esse primeiro momento, de contrição, do qual ficaram como testemunhos apenas as edições extras e dos dias 12 e 13 de setembro dos jornais e as fitas de vídeo das emissoras de TV, foi logo substituído por uma fase de extroversão patriótica e busca de culpados. Passada a estupefação inicial, vieram as primeiras reflexões conscientes, e elas foram compreensivelmente primárias e rasas.

É desse período, por exemplo, a célebre entrevista do âncora e símbolo do jornalismo independente dos EUA, Dan Rather, ao apresentador David Letterman (o primeiro que teve a coragem de recolocar seu programa no ar e de brincar, mesmo que cautelosamente, com a catástrofe), no dia 18 de setembro de 2001, na rede CBS de TV.

Ali, Rather —na contramão de sua carreira e das melhores tradições de seu ofício naquele país— se colocou à disposição do presidente Bush para lutar contra os responsáveis pelo terrorismo.

Como Rather, outro jornalista de primeira linha da imprensa americana, Thomas Friedman, que investiu boa parte de sua excepcional carreira na tentativa —muitas vezes bem-sucedida— de explicar o Islã ao Ocidente, dedicou-se nas semanas seguintes ao 11 de setembro a procurar, com ódio e preconceito, culpados pelos ataques. A maior parte de suas colunas no "The New York Times" até poucos meses atrás seguiram a linha oficial do governo americano de unilateralismo, paranóia e busca de alinhamento incondicional (www.nytimes.com/timestopics/friedman.html).

Passados alguns dias, os pruridos comerciais se esvaneceram e as bancas de jornal e livrarias começaram a se encher de revistas e livros preparados para exaltar o nacionalismo chauvinista e o heroísmo dos bombeiros de Nova York, explorar a comoção nacional e reafirmar a confiança no futuro do país. Exemplos dessa safra são: "A New America" ("Newsweek", commemorative issue, Fall 2001), "One Nation: America Remembers September 11 2001" (Life Magazine editors, New York: Life, 2001) e mais algumas dezenas de outros, todos fartos em fotografias coloridas e declarações de amor à pátria. De todos, como documento iconográfico, talvez mereça destaque "New York September 11", uma coleção das melhores fotos da catástrofe feitas pelos jornalistas da agência Magnum.

Certas publicações de boa qualidade, como o jornal "The New York Times", sediadas no local onde vivia o maior número de vítimas, voltaram-se para uma abordagem sentimental, mas não melodramática, da dimensão individual dos diretamente atingidos pela violência. Durante meses, o "Times" publicou a biografia de cada um dos mortos nas torres gêmeas. A série acaba de sair em forma de livro ("Portraits 9/11/01: The Collected "Portraits of Grief' from The New York Times", de Howell Raines, Janny Scott; New York: The New York Times, 2002). O que parecia uma boa idéia no dia-a-dia revela-se, quando visto em conjunto, uma anotação quase caricata de vidas de pessoas comuns subitamente transmutadas em personagens históricos que elas nem foram nem pretenderam ser.

Outros periódicos (poucos nos EUA, mais numerosos na Europa e na América do Sul), passadas as primeiras semanas, dedicaram-se ao esforço mais sério de entender melhor o que havia acontecido e as implicações reais para o futuro da sociedade americana e das relações internacionais. Dignas de registro são todas as colunas "Notebook", de Lewis H. Lapham, editor da revista "Harper's" (www.harpers.org). A lucidez e a coragem desse veterano ensaísta, num ambiente em que o dissenso era considerado por muitos como traição, merecem todo respeito. Fora dos EUA, a melhor revisão dos acontecimentos foi feita pela publicação britânica "Granta", em sua edição número 77, monotemática, sob o título "What We Think of America" (www.granta.com).

Alguns artigos de grandes nomes da intelectualidade ocidental foram marcantes nesse período. Como "O Fator Deus", do romancista português José Saramago (que a Folha publicou em sua edição de 19 de setembro de 2001, na página Especial-8) ou "A War We Cannot Win", do romancista inglês John Le Carré (originalmente publicada no jornal "The Guardian" de 8 de outubro de 2001 e reeditada pelo Council on Foreign Affairs em seu site www.cfr.org/Public/publications/xRoy.html). Talvez por não serem americanos, e estarem emocionalmente um pouco mais insulados do impacto, Saramago, Le Carré e diversos outros (como a indiana Arundhati Roy, em "The Algebra of Infinite Justice", também publicado originalmente em 29 de setembro de 2001 pelo jornal britânico "The Guardian" e disponível no site do Council on Foreign Affairs) foram capazes de perceber com mais nitidez a complexidade das circunstâncias que envolviam os fatos.

Distanciamento geográfico não foi garantia, no entanto, de maior tirocínio em relação ao 11 de setembro, mesmo depois de algumas semanas. A italiana Oriana Fallaci, por exemplo, publicou o artigo "La Rabbia e l'Orgoglio" (A Raiva e o Orgulho) no jornal "Corriere della Sera" (25 de setembro de 2001), talvez o mais virulento ataque contra o islamismo escrito por qualquer intelectual de peso nos últimos 11 meses. O artigo, ampliado, acaba de sair na forma de livro em Paris pelas Éditions Plon (com o título de "La Rage et l'Orgueil").

No Brasil, com exceção do trabalho dos jornais de prestígio (a Folha, "O Estado de S. Paulo", "O Globo" e o "Valor Econômico" se destacaram pela publicação de artigos de revistas e diários estrangeiros e de autores nacionais, como se pode verificar na consulta aos sites de qualquer deles), poucas iniciativas partiram dos meios acadêmicos para tentar pensar de modo mais sistemático e menos reativo as implicações e os motivos da tragédia.

Entre elas, a principal talvez tenha sido o fórum de debates que o então reitor Jacques Marcovitch, da Universidade de São Paulo, convocou para o dia 21 de setembro. Um grupo de 20 intelectuais, de diversas áreas e instituições, reuniram-se durante todo o dia na USP, depois de terem produzido curtos ensaios, e debateram o assunto. O resultado apareceu em duas edições especiais do "Jornal da USP" (1º e 8 de outubro de 2001).

À medida que o tempo passa, a qualidade da produção intelectual a respeito do 11 de setembro se eleva. Em grande parte, apenas porque mais fatos tornam-se disponíveis e permitem elucidar pontos que estavam obscuros. Também porque o arrefecimento dos instintos patrióticos de autodefesa da comunidade universitária e jornalística americanas permitiu o renascimento, pelo menos parcial, do espírito crítico em relação ao assunto. Outra razão é que os autores passaram a delimitar melhor seu objeto de análise e, como quase sempre ocorre, quanto mais focado e menos genérico, melhor é o trabalho acadêmico.

Por exemplo, por que falharam os serviços de inteligência dos EUA? Essa incômoda pergunta, em princípio evitada como impatriótica, passou a ser objeto da investigação da imprensa a partir de maio deste ano. Todos os jornais de prestígio ("The Washington Post" e "The New York Times" com mais ênfase) se dedicaram ao tema. Dois repórteres da rede ABC de TV, John Miller e Michael Stone, acabam de editar o livro mais elucidativo até agora publicado sobre o tema ("The Cell: Inside the 9/11 Plot, and Why the FBI and CIA Failed to Stop It"; New York: Hyperion, 2002).

Um caso de focalização bem-sucedida é a meticulosa descrição do extraordinário trabalho de limpeza da área onde estavam os prédios do World Trade Center, feita por William Langewiesche, numa série de reportagens para a revista "The Atlantic Monthly", iniciada na edição de agosto deste ano, vai se encerrar na de outubro (www.theatlantic.com), e será editada, em versão ampliada na forma de livro ainda este ano sob o título de "American Ground: Unbuilding the World Trade Center" (pela editora North Point).

O menor medo em relação à manifestação de discordância quanto à visão majoritária nos EUA provoca a edição de livros com textos críticos, como "Beyond September 11: An Anthology of Dissent" (coordenado por Phil Scraton, London: Pluto Books, 2002), onde aparecem, entre os autores, os "suspeitos" de sempre (como Noam Chomsky, o qual já havia, no calor da hora, publicado seu próprio livro de ensaios sobre o tema, chamado "9/11", em outubro do ano passado —com tradução em português da editora Bertrand Brasil), mas também pessoas não identificadas com a "esquerda" no espectro ideológico da intelectualidade americana, como o jornalista Robert Fisk.

Divulgação

Do establishment acadêmico americano, também saem trabalhos mais apurados sobre o 11 de setembro, agora às vésperas do primeiro aniversário. Do grupo ligado ao Partido Democrata, em especial ao ex-presidente Bill Clinton, que ficou na defensiva logo após os atentados por receio de que a atual administração pudesse acusá-lo de negligência, acaba de ser editado "The Age of Terror" (New York: Basic Books, 2002), editado por Strobe Talbott (ex-secretário-assistente de Estado no governo Clinton) e Nayan Chanda, diretor do Centro de Estudos sobre a Globalização da Universidade de Yale. A origem desse livro é iniciativa similar à da USP, há pouco citada: professores de Yale se encontraram com seus alunos e colegas e com professores de outras instituições para discutir o tema. Só que eles prosseguiram com os debates, que resultaram nessa excelente coleção.

O aniversário do 11 de setembro vai render muito mais produtos em diversos formatos, como, por exemplo, o ainda não lançado DVD "9/11 The Filmmakers' Edition" (dirigido por Jules Naudet, da rede CBS de TV), do qual já se sabe tratar-se de documentário com muitas loas ao heroísmo dos bombeiros de Nova York, lágrimas pelas vítimas e exaustivas repetições do momento do impacto dos aviões com as torres do World Trade Center.

O melhor "presente" desta celebração, certamente copiosa em apelos fáceis ao sentimentalismo coletivo, talvez seja "The Rising", disco de Bruce Springsteen. A música popular americana quase não reagiu à tragédia. O "hino" do 11 de setembro acabou sendo a versão que James Taylor havia feito, antes dos ataques, da clássica canção de Natal "Have Yourself a Merry Little Christmas" (escrita em 1944 por Hugh Martin e Ralph Blane para o filme "Meet Me in St. Louis", com Judy Garland), que, pela sua singeleza e o tom intimista que Taylor lhe deu, acabou atingindo em cheio o coração dos americanos naqueles momentos de necessária auto-compaixão. A música foi lançada em novembro de 2001, apenas para rádios, e sai neste mês como uma das faixas de "October Road", o primeiro CD de Taylor desde 1997 (Columbia Records).

Já o disco de Springsteen é intencionalmente uma homenagem ao 11 de setembro. É o primeiro trabalho do roqueiro das classes trabalhadoras americanas desde "The Ghost of Tom Joad", de 1995, e possivelmente o melhor álbum de toda sua vida. Nas melodias, mantém a tensão que caracteriza sua obra, entre o amor ao rock e o respeito ao folk, acrescida de uma suavidade realçada por uma sólida base de violinos e solos de sax em diversas faixas, nunca antes utilizada por ele. Nas letras, consegue fazer com poesia, simplicidade e contida emoção aquilo que a pompa artificial das biografias do "The New York Times" acima mencionadas não foram capazes: retratar o drama individual de quem perdeu suas pessoas queridas nos atentados e universalizá-lo sem cair na pieguice, no revanchismo ou na patriotada: "Coffee cup's on the counter, jacket's on the chair/Paper's on the doorstep, but you're not there".

Carlos Eduardo Lins da Silva, 49, é diretor-adjunto de redação do jornal "Valor Econômico". Foi correspondente da Folha em Washington por oito anos. Na vida acadêmica, é livre-docente e doutor pela Universidade de São Paulo e mestre em Comunicação pela Michigan State University; foi professor da USP, da Universidade de Georgetown e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tentou tocar piano e saxofone sem êxito, mas a música é sua grande paixão.

Links relacionados:
  • "The Atlantic Monthly" - www.theatlantic.com

  • CBS - www.cbsnews.com

  • Council on Foreign Affairs - www.cfr.org/Public/publications/xRoy.html

  • "Granta" - www.granta.com

  • "Harper's" - www.harpers.org

  • Thomas Friedman no "New York Times" - www.nytimes.com/timestopics/friedman.html


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