Folha Online sinapse  
27/01/2004 - 03h00

Gilson Schwartz: A invasão dos medíocres

GILSON SCHWARTZ
colunista da Folha de S.Paulo

O cinema é a ilusão de movimento pela arte da montagem. Como desmontar ou desconstruir essas iluminações do tempo? Alguma reengenharia da mentira faz o que há de mais interessante em "As Invasões Bárbaras" ("I.B."). O título já é provocador: bárbaro é, por definição, um invasor (oposto de civilizado). "I.B." é portanto uma redundância, uma dupla negação, reincidência do que é estranho. E, como ensinava Hegel, dupla negação não é afirmação, mas superação, é ir além (e para o além).

A filosofia sempre separou o "ser" do "não ser". Alertar para uma "invasão" significa detectar a presença de um outro no meu espaço ou de um outro tempo na minha história. Penso, logo existo. O outro é o que não sou. O logos do ego é a negação do outro que me ameaça como um invasor. Mas como negar o que não é, ou seja, repudiar o outro, sem reconhecer que esse nada faz parte do meu esforço para me definir? No lugar do "penso, logo existo", surge o "nego o outro, logo persisto".

Que "outro" de mim mesmo é esse com que me deparo para sobreviver? O outro de minha vida, de todas e de cada uma das vidas, é o nada da morte. Em "I.B.", esse outro das nossas vidas surge inicialmente sob duas formas exemplares: o câncer e o ataque terrorista às torres de Nova York.

Mas, no câncer, o anulamento da vida vem de dentro da própria célula, como um inimigo interior. Há muitas "invasões bárbaras", que desfilam pelo filme provocando contradições.

Muita gente já se deixou levar por algum tipo de revelação mística, numa síntese entre o ser e o nada, num espírito ou no "fim da história". Mais comum ainda são as perversões, sínteses tortas adequadas à nossa época de embustes financeiros. "I.B." é didático ao colocar em primeiro plano essa ilusão de que o dinheiro vai resolvendo tudo, revelando e dissolvendo todas as contradições (pai-filho, amor-sexo, capital-trabalho, Ocidente-Oriente, vício-virtude, droga-sobriedade, arte-entulho, Europa-América, vida-morte). É o fetiche da moeda, ao mesmo tempo em ritmo de comédia, para quem tiver estômago (o hospital canadense do filme parece uma piada em cima do seriado norte-americano "E.R.", sitcom de Micheal Crichton).

A mediocridade intelectual típica das classes médias embevecidas por existencialismos, marxismos, liberalismos e outros "ismos", mas também dos "burrocratas" incapazes de criar e sonhar, sobrevive neste mundo à custa dessa construção de um "terror" que estaria prestes a nos invadir e destruir, criando o medo permanente de ser feliz.

"I.B." nos alerta para o fato de que não há invasão alguma, apenas a perversão de medíocres que na aparência se aquietam numa ilusão de acomodados que buscam "bons sentimentos". Na prática, não há nem terror nem revolução. Somente a inteligência dessas perversões pode abrir caminho para alguma evolução. E à questão estratégica: pode existir invasão inteligente?

Gilson Schwartz, 43, é diretor acadêmico do projeto Cidade do Conhecimento da USP.
E-mail: schwartz@usp.br

     

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