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17/02/2004 - 02h46

Artigo: A redação e o vestibular

JOSÉ LUÍS LANDEIRA
especial para a Folha de S.Paulo

A redação nos chamados grandes vestibulares não é bem o que se apregoa no ensino médio. Para atender ao que Unicamp, Unesp e USP, por exemplo, pedem a seus futuros alunos, o candidato deve conseguir superar o modelo oferecido pela maioria dos colégios e cursinhos.


Uma redação que siga uma estrutura muito divulgada de introdução, com resumo do assunto abordado, desenvolvimento genérico do tema proposto e conclusão retomando a introdução, consegue no máximo uma nota mediana. Muitas redações mal pontuadas escondem o triste paradoxo de o candidato acreditar que havia feito um bom trabalho.

Antes de tudo, o perfil que as consideradas grandes universidades procuram é o do aluno que tenha algo a dizer. Por exemplo, o tema deste ano da Fuvest, o tempo, exigia uma abstração ao mesmo tempo científica, sociológica e filosófica que não é comum na escola brasileira e não faz parte do cardápio usual dos cursinhos.

A interdisciplinaridade é ainda, numa grande parte das instituições, apenas um motivo para campanhas insossas e românticas sobre o ambiente. Sem conseguir transitar entre as diversas disciplinas para produzir uma dissertação, o candidato pouco tem a oferecer —a não ser idéias mal articuladas entre si, preenchendo um modelo fornecido de antemão. Conseqüência? Certamente uma nota baixa.

Sobre um tema como o tempo, muitos conseguiriam, nesse último vestibular, citar conceitos de sala de aula como "o tempo é relativo" ou "o passado explica o presente". Contudo é reduzido o número dos que justificariam razoavelmente tais teses fugindo de clichês mal formulados, como "se Hitler tivesse estudado o passado, não teria repetido o erro de Napoleão, ao invadir a Rússia no inverno". Poucos pensariam na possibilidade de Hitler dispor de um armamento superior ao que Napoleão utilizara um século antes. A questão poderia ser não de desconhecimento histórico, mas de orgulho e crença na tecnologia da época.

Outro problema é o modelo de dissertação que se forneceu aos alunos no ensino médio ao longo de sua formação. Trata-se de um modelo muito repetitivo e que não foca no principal: a posição do candidato sobre o assunto. Ao contrário, é comum as aulas de redação incentivarem os alunos a não se posicionarem, esquecendo que uma dissertação é a defesa de um ponto de vista, em um texto que deve transmitir uma imagem de autoria confiável, de maneira que o leitor se sinta motivado a interagir com as idéias expostas.

A dissertação é um texto complexo e para o qual, sem um trabalho interdisciplinar sério, aulas de "redação" apenas oferecem ajuda limitada.

Para transmitir uma imagem de confiabilidade, a dissertação deve apresentar argumentos coerentes entre si e com a realidade. O tema da Unicamp deste ano, por exemplo, solicitava ao aluno posicionar-se a favor da multiplicidade dinâmica que caracteriza as cidades. Isso requer uma postura crítica a partir de um conhecimento cultural razoável, em que a coletânea de textos fornecida ecoaria com a experiência pessoal e com outras leituras feitas pelo aluno.

Os argumentos, por sua vez, deveriam ser apresentados de forma devidamente encadeada. Em muitas redações, verifica-se a presença de conectivos que não estabelecem nenhuma relação com o exposto anteriormente. Um candidato que escreve "há vários tipos de cidade, portanto não podemos afirmar qual é a melhor" desenvolve uma inexistente relação de causa (há vários tipos de cidade) e conseqüência (não podemos afirmar qual é a melhor).

Pode ser até que não considere conveniente afirmar qual é o melhor "tipo de cidade", pressupondo que tenha definido o que quer dizer com isso, mas a causa certamente não é a que apresenta. Textos sem as devidas relações de causa e conseqüência, sem a defesa de um ponto de vista de forma coerente ou apenas repetindo em outras palavras os textos da coletânea fornecida não receberão boas notas em grandes vestibulares, mesmo que não apresentem desvios gramaticais.

A Unesp pediu aos candidatos deste ano que dissertassem sobre os estrangeirismos na língua portuguesa. O tema requeria que o candidato tivesse uma postura sobre o assunto. Por exemplo, poderíamos pensar que o português transplantado da Europa para a América se, por um lado, funcionou como uma das bases de nossa unidade política nacional, adaptando as influências estrangeiras à sua realidade, por outro, reproduziu as desigualdades da sociedade brasileira, criando mais uma diferença social entre os que falam bem e os que falam mal.

Em vez da democratização do falar brasileiro da língua portuguesa, o aluno poderia argumentar que há um freqüente descaso com a língua na mídia, o que empobrece a comunicação. Esse descaso reforça a postura daqueles que rotulam indiscriminadamente o que vem de fora como superior, manifestando o que aparenta ser um complexo cultural de inferioridade.

Desenvolver um tema como esse requer do vestibulando uma vivência reflexiva e interdisciplinar anterior, que usualmente a escola não lhe forneceu.

A prática da sala de aula de apresentar informações sem reflexão leva o aluno a penar no ato de escrever. A aula-show que faz rir, mas não faz pensar, volta-se mais tarde contra o próprio aluno. Muitos saem do ensino médio sem consciência prática de que para escrever e para falar usamos registros de linguagem diferentes. Como resultado, escrevem textos que seriam mais bem entendidos se fossem lidos em voz alta.

As redações nos vestibulares elucidam a prática curricular em língua portuguesa. Enquanto a escola, particular ou pública, não levar a sério que a prática da escrita não pode se reduzir a uma única disciplina, sujeita a fórmulas mal desenvolvidas, cria-se mais uma exclusão na educação brasileira: a exclusão à palavra escrita, que atinge a todas as camadas sociais.

José Luís Landeira, 36, é doutorando em educação e linguagem pela Faculdade de Educação da USP e professor de metodologia do ensino da língua portuguesa.

     

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