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17/02/2004 - 02h48

Verbete: Toma lá, dá cá

JOÃO BATISTA NATALI
da Folha de S.Paulo

Reprodução
A expressão "reciprocidade diplomática" entrou recentemente em evidência em razão da decisão de um juiz federal brasileiro, a seguir referendada pelo governo, de fotografar e registrar as impressões digitais de cidadãos norte-americanos que desembarcam no Brasil.

A reciprocidade significa, e apenas nesse caso, uma espécie de retaliação, uma resposta mal-humorada a uma decisão idêntica por parte do governo dos Estados Unidos, que reforçou em suas fronteiras os mecanismos de identificação e controle de cidadãos dos quais se exigem vistos de entrada. Apenas os portadores de passaportes de 27 países, basicamente europeus, desembarcam sem visto nos aeroportos norte-americanos. Quem precisa de visto deixa o retrato e a impressão digital.

Mas a reciprocidade diplomática é bem mais que isso e quase nunca está marcada por tensão ou gestos oficiais inamistosos.

Vejamos dois exemplos de monótona tranqüilidade. O primeiro: estudantes estrangeiros podem se transferir para cursos de universidades brasileiras, desde que seus países de origem forneçam garantias semelhantes a estudantes daqui.

O segundo: em janeiro, deputados e senadores redigiram em Brasília um ofício em que solicitavam ao Itamaraty que reabrisse sua embaixada na República dos Camarões, fechada há quatro anos, após a reestruturação das representações diplomáticas em solo africano. Como Camarões manteve aberta sua embaixada em Brasília, o Brasil estaria sendo deselegante em termos de reciprocidade.

De certo modo, o princípio da reciprocidade, previsto em convenções multilaterais ou em protocolos bilaterais, parte do mesmo pressuposto básico que prevalece no conjunto das relações diplomáticas, a saber: um país mais forte não pode impor sua vontade a um país mais fraco por meio de regras de conduta que seriam válidas apenas para um dos lados.

A reciprocidade se desenvolveu sobretudo em questões de comércio. O país A se abrirá a produtos do país B, desde que o país B faça o mesmo com os produtos do país A.

Grupos e órgãos internacionais, como o Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e sua sucessora, a OMC (Organização Mundial do Comércio), procuram fazer com que a reciprocidade seja aplicada entre parceiros cada vez mais numerosos no tablado internacional, até que se torne algo reconhecido e aplicado por todos.

Antes disso, quando vigorava um regime de regulamentação, o transporte aéreo —e é apenas um exemplo— era submetido a regras bem rígidas. Aviões com a bandeira de um determinado país poderiam voar comercialmente aos aeroportos de um outro país apenas se acordos bilaterais estipulassem que as rotas seriam divididas de forma equânime e que nenhuma companhia de aviação sairia ganhando à custa da outra.

De uma maneira mais política que econômica, a reciprocidade se aplica a questões rotineiras, como as visitas de chefes de Estado. Hu Jintao, que se tornaria presidente da China, visitou em maio de 2002 os Estados Unidos porque em fevereiro daquele ano o presidente George W. Bush esteve em Pequim. O mesmo vale para o convite para visitar o Brasil que, em sua recente passagem por Damasco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez ao presidente da Síria, Bashar al Assad.

O princípio da reciprocidade é um dos pilares mais sólidos e antigos das relações internacionais, que surgiram com o atual formato (entre Estados constituídos) no final do século 18. Foi no século 19 que se generalizou a tendência de construção de Estados burocraticamente sólidos, capazes de se impor internamente e também de se relacionar com outros Estados vizinhos ou distantes.

Se o Brasil mantém em determinado país uma embaixada e três consulados, esse país também poderá abrir em território brasileiro a mesma quantidade de instalações.

Existe uma tendência mundial para descomplicar as coisas. É por isso que o princípio da reciprocidade é cada vez mais evocado entre todos os parceiros (países) que integram determinado bloco. Na União Européia, por exemplo, um dentista diplomado na Alemanha pode, em princípio, abrir consultório na Espanha, do mesmo modo que um médico espanhol pode clinicar no Reino Unido. A reciprocidade diplomática é adotada de modo multilateral.

A descomplicação se dá também nas relações bilaterais. Um cidadão francês que trabalha em São Paulo para uma empresa francesa não pagará simultaneamente Imposto de Renda no Brasil e na França. Um protocolo entre os dois países prevê que não haverá bitributação. Brasil e França o negociaram com base no princípio de reciprocidade. Ou, para dar um exemplo comercial, Brasil e Argentina são signatários no Mercosul de um "regime automotor", pelo qual se facilitam transações de veículos e autopeças.

Há circunstâncias em que a reciprocidade pode se tornar problemática. Um deles: uma convenção internacional impede que um cidadão seja condenado pela Justiça de um país estrangeiro a uma pena maior que aquela que ele receberia, pelo mesmo crime, se tivesse sido julgado em seu próprio país.

No México, não existe pena de morte para crimes comuns. Nos Estados Unidos, muitos dos Estados (o Texas é o campeão deles) usam a pena de morte de forma quase rotineira. Pois bem, há 54 mexicanos condenados à morte e que aguardam a execução em prisões norte-americanas. O México acionou no mês passado a Corte Internacional de Haia para tentar impedir que, a exemplo do que ocorreu com cinco mexicanos nos anos 90, esses sentenciados sejam executados.

A Corte de Haia foi acionada porque, segundo os mexicanos, os norte-americanos, grosso modo, não respeitaram a reciprocidade e ainda permitiram que seus cidadãos fossem julgados sem assistência consular.

Sem registro de recursos à Corte de Haia, há litígios parecidos entre, de um lado, os EUA e, de outro, França e Reino Unido, que tampouco adotam a pena de morte e que têm alguns de seus cidadãos presos por suspeita de ligações com as redes de terrorismo islâmico.

João Batista Natali, 55, é repórter especial da Folha de S.Paulo. Já foi correspondente em Paris e editor de Mundo. E acredita que a reciprocidade é uma boa ferramenta de negociação.

     

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