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17/02/2004 - 02h54

A memória do cheiro

FERNANDO EICHENBERG
free-lance para a Folha de S.Paulo, de Paris

Fotos Divulgação
Frascos com amostras de essências catalogadas pela Osmothèque
Um museu para resguardar e proteger fragrâncias e aromas só poderia ter surgido na França, ainda hoje o primeiro país a ser lembrado quando a palavra é perfume. Instalada em Versalhes, nos arredores de Paris, desde 1990, a Osmothèque é, no entanto, um "museu" bastante singular, concebido como um local de recuperação da memória de perfumes perdidos e de preservação de criações contemporâneas. Jean Kerléo, 71, perfumista aposentado e presidente da Osmothèque, se dedica com uma paixão juvenil à missão de recriar aromas esquecidos e classificar fragrâncias do presente na sua biblioteca de odores.

Kerléo debutou na profissão aos 22 anos, e no seu currículo constam 32 anos de serviços prestados como perfumista da célebre marca Jean Patou e a criação do primeiro perfume para o estilista Yohji Yamamoto.

A biblioteca de odores possui amostras de mais de 1.400 perfumes, dos quais 300 foram ressuscitados graças ao olfato e ao trabalho de pesquisa da equipe do museu.

A maior relíquia do passado da Osmothèque, que data do século 1º, é o "Parfum Royal" (perfume real), utilizado pelos romanos e recriado a partir de uma fórmula anotada pelo escritor Plínio, o Antigo (23-79). "Naquela época, se colocava perfume antes de ir à mesa, como uma espécie de aperitivo olfativo", explicou Kerléo ao Sinapse. Depois de decifrar os nomes gregos e latinos dos 27 ingredientes do perfume —a receita inclui três tipos de canela, por exemplo—, o mais difícil no trabalho de reconstituição foi acertar as quantidades de cada um deles, assinaladas na fórmula original por medidas pouco confiáveis, como "punhado" ou "pitada" (hoje, tudo é pesado em miligramas, com exatidão rigorosa).

Outra façanha da equipe do museu foi a recuperação da "Eau de la Reine de Hongrie" (água da rainha da Hungria), do século 14, o primeiro produto aromático alcoólico conhecido. "Em vez de destilar o alecrim com água, como se fazia na época, alguém teve a louca idéia de utilizar álcool", contou Jean Kerléo.

Entre suas recriações preferidas está também a "Eau de Cologne Napoléon" (água de colônia Napoleão), utilizada pelo imperador Napoleão Bonaparte no seu derradeiro exílio, na ilha de Santa Helena (1815-1821). A fragrância foi recriada a partir de uma fórmula manuscrita de autoria de seu "valete de quarto" Louis-Etienne Saint-Denis, apelidado de Ali por seu mestre. Durante a campanha na Itália, o imperador descobrira as águas de colônia, produtos suaves feitos de uma mistura de limão, laranja e bergamota destilados com álcool. "De manhã, Napoleão derramava um pequeno frasco de água de colônia sobre o corpo. Um minuto depois, o álcool havia evaporado, mas ele apreciava a boa sensação", contou Kerléo. Sem dispor do produto em Santa Helena, Napoleão conseguiu obter a fórmula e, com a ajuda de seu valete, ter de volta sua revigorante loção matinal.

Na Antigüidade, entre 60 e 80 produtos eram utilizados na fabricação de perfumes, segundo Kerléo. No século 17, na França, havia somente três ou quatro produtos a mais que aqueles mais antigos. "Em 15 séculos, quase não se evoluiu em termos de variedade de matérias-primas de base", disse, definindo a Idade Média como a época do obscurantismo também para a perfumaria. "Na Europa, por causa de pestes e epidemias, como a cólera, temia-se a água", explicou.

Visitantes durante explicação sobre o acervo (à esq.), e o perfumista Jean Kerléo, presidente da Osmothèque

Todos os perfumes da Osmothèque são mantidos numa câmara fria, em temperatura constante de 12 oC, ao abrigo da luz natural, e conservados em frascos com o gás neutro argônio, mais pesado que o ar, para evitar a oxigenação das soluções. Desse modo, os preciosos líquidos podem ser defendidos de seus três piores inimigos: o calor, a luz do dia e o oxigênio do ar.

"Nossos perfumes foram recriados da forma mais fiel possível, respeitando a utilização dos produtos de origem. Pouco importa se hoje, na perfumaria, dizem que não se tem mais direito ao uso de produtos de origem animal e de alguns produtos de síntese", observa o presidente da Osmothèque. Kerléo, apesar de invocar um tom de nostalgia, mostra-se atento aos rápidos avanços da indústria do perfume: "Antes, tínhamos perfumes de qualidade, mas pouca gente se interessava por eles. Hoje, temos menos perfumes de qualidade, mas todo mundo se interessa", diz.

Além do trabalho de reconstituição, o museu solicita a fabricantes de perfume de todo o mundo o envio de 300 a 500 mililitros de cada nova fragrância criada (a rede O Boticário, por exemplo, é um fabricante que manda algumas amostras). Segundo Kerléo, cerca de 200 novos perfumes são lançados anualmente no mercado internacional.

Instalada nas mesmas dependências do Isipca (Institut Supérieur International du Parfum, de la Cosmétique et de la Aromatique Alimentaire), a Osmothèque serve de inspiração para os alunos da escola internacional de formação de perfumistas e especialistas em cosmética e aromática alimentar.

A Osmothèque só pode ser visitada com hora marcada. A equipe de perfumistas prepara uma sessão de cerca de três horas, durante a qual explica a história e as técnicas de fabricação de perfumes e exercita a capacidade olfativa dos visitantes, fazendo-os cheirar odores de todas as épocas.

Sobre os perfumes que o museu reconstitui e que não estão mais à venda no mercado, dos mais antigos aos mais recentes, o presidente do museu diz que não tem como avaliar o valor. Dos mais recentes que não estão mais à venda, Kerléo cita o Iris Gris, de Jacques Fath, como um dos mais caros. Entre os que ainda estão à venda, há alguns de alto valor: dois da Jean Patou são os mais caros —o Joy, criado em 1930 (cujo preço varia de acordo com a quantidade do frasco; há, por exemplo, um vendido em frasco de cristal Baccarat, por US$ 900), e o 1000 (criado em 1972).

"Nós não vendemos nada, nós fazemos sentir", diz Jean Kerléo, ao recordar o dia da inauguração da Osmothèque, quando uma senhora reclamava por uma amostra do perfume "Arlequinade" (Rosine), explicando: "Vim procurar minha mãe...". Não é por acaso que o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) escreveu que "o perfume permanece como a forma mais tenaz de memória". n

Saiba mais:
L'Osmothèque
36, rue du Parc-de Clagny
78000, Versailles, França
Tel. 00/xx/33/1/3955-4699
osmotheque@wanadoo.fr

     

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