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17/02/2004 - 03h36

Social no pé e na cabeça

MARCOS DÁVILA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Quando a folia acabar, na próxima Quarta-Feira de Cinzas (dia 25), a maioria das pessoas só vai ouvir falar em Carnaval novamente em fevereiro de 2005. Mas, para as escolas de samba, o trabalho que culmina nos quatro dias de festa dura o ano inteiro. E não estamos falando somente da preparação de carros alegóricos, fantasias e sambas-enredo. Grande parte das escolas de samba também desenvolve projetos sociais e de educação nas comunidades em que estão inseridas.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Treino de futebol na quadra da Unidos de Vila Maris (SP)

Com o apoio de ONGs, empresas, sindicatos e convênios com governos, muitas escolas se transformam em verdadeiros pólos de cultura e lazer nas regiões mais pobres das cidades. A base de tudo isso continua sendo o trabalho voluntário, como o que faz a diretora da ala das baianas da escola paulistana Águia de Ouro, Daiza Carvalho Trindade, 62.

Conhecida por todos na comunidade como Dadá, ela aproveita as horas vagas e o espaço da escola de samba para dar aulas de artesanato para a terceira idade e para crianças da comunidade. "Não podemos deixar que a escola se transforme num imenso urso branco antes de o Carnaval chegar", afirma Dadá, que pretende formar microempresários com suas aulas de pintura de azulejo e confecção de bijuterias.

"A mídia só dá atenção para as escolas de samba durante o Carnaval, mas se esquece da gente no resto do ano", afirma Sidnei Carrioulo Antônio, presidente da Águia de Ouro. Todos os domingos, a escola recebe em sua quadra crianças e adolescentes de 8 a 18 anos para aprender a tocar na sua bateria mirim, que recebe apoio do projeto Barracão, desenvolvido pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo desde 2002.

"Normalmente, as pessoas que freqüentam as escolas de samba são muito pobres e moram em favelas. Por isso é importante a ocupação das escolas durante o ano inteiro", diz Idenir Andrade, assistente de coordenação do projeto Barracão, que atualmente alcança 50 escolas de São Paulo. "Um dos requisitos para participar das oficinas é que a criança esteja estudando, para incentivar a volta às aulas", afirma Andrade.

Segundo ela, a secretaria paga três horas semanais, a R$ 20 a hora-aula, para professores indicados pela própria escola. Além das baterias mirins, há incentivo para oficinas de balé, teatro e cavaquinho. "Mais que formar novos ritmistas para a escola, nossa intenção é tirar a criançada das ruas por meio da música", explica Armando Guerra Jr., diretor da bateria da Águia de Ouro.

Há três anos, Gustavo Luiz Reis, 11, tem aula na bateria mirim da Rosas de Ouro, no projeto Samba se Aprende na Escola. Neste ano, ele vai tocar na avenida com a bateria oficial da escola pela primeira vez e não esconde sua empolgação. Mas, nas últimas semanas, Gustavo tem passado as tardes com outro instrumento na mão: uma câmera de vídeo. Com outros três amigos de seu bairro, a Freguesia do Ó, o garoto participa de uma oficina de vídeo ministrada pelo professor Fábio Andriani, 43, dentro da quadra da Rosas de Ouro. O curso é uma parceria da escola com a ONG Artescola e com o núcleo espírita Doutor Alberto Salvador e deve se estender pelo ano inteiro.

"A idéia é ensinar esses jovens para que, no ano que vem, eles mesmos já possam andar sozinhos. Mais do que a técnica de gravar e editar, estamos interessados em desenvolver a identidade desses jovens, ensiná-los a pensar sobre a cultura deles", afirma Andriani, que pretende também montar uma ilha de edição dentro da escola.

"É interessante que os garotos entrem em contato com profissionais da área para que, futuramente, possam pensar em se encaixar no mercado. É importante que eles ganhem dinheiro, pois muitos acabam faltando às aulas porque têm de arrumar algum trocado", afirma o professor.

"Estou adorando o curso e gostaria de seguir essa profissão", afirma Gustavo. Seu colega de oficina, Teterson Tiago Américo, 15, também quer se tornar repórter de televisão. "Se não tivesse esse curso, a gente estaria na rua aprendendo o que não deve. A Rosas de Ouro é o único lugar que a gente pode freqüentar. Aqui, não temos mais nada", diz Teterson, que também destaca o projeto Recreio nas Férias, desenvolvido há mais de um ano pela Prefeitura de São Paulo na rede municipal de ensino, que se estende às escolas de samba.

"A maior dificuldade que nós enfrentamos é formar parcerias. A escola de samba ainda é um tabu, há um preconceito muito grande. Mas uma escola de samba não é uma bagunça, pode ser uma fundação séria, sim. No ano passado, tivemos cursos de telemarketing, de cabeleireiro e de higiene hospitalar, em parceria com a Força Sindical", afirma a coordenadora dos projetos sociais da Rosas de Ouro, Rose Simões, 36, que também conseguiu neste ano um curso profissionalizante de manicure com 70 mulheres da comunidade, em parceria com editora Gusmões.

Aula de vídeo na escola Rosas de Ouro (SP)
A Rosas de Ouro também tem uma relação de famílias mais pobres nas cercanias da escola para fazer entregas de leite e de cestas básicas, que consegue em parceria com a Secretaria da Agricultura do Estado.

Para a pesquisadora Elisabete Zorzett, que está fazendo um estudo sobre o trabalho social das escolas de samba de São Paulo, as ações feitas pela maioria das escolas ainda estão muito ligadas ao assistencialismo. "Há ainda um longo caminho a percorrer, mas o primeiro passo é falar sobre o assunto, que as pessoas vão abrindo os olhos. Já pensei até em sugerir que a liga das escolas de samba também avaliasse o trabalho social das escolas e somasse notas aos desfiles de Carnaval", afirma Elisabete, que aponta a Rosas de Ouro e a Unidos de Vila Maria como as mais organizadas de São Paulo.

A Unidos de Vila Maria encontrou no futebol uma maneira de trazer as crianças do bairro para a escola. Em 2001, eles construíram uma quadra ao lado do barracão da escola e hoje dão aula em quatro dias da semana para cerca de 300 crianças e adolescentes de 9 a 17 anos.

O diretor social da escola, Ricardo Okabe, conta que a escola tem uma psicóloga voluntária que atende as crianças e também oferece serviços odontológicos gratuitos para a comunidade. Há ainda dois cursos fixos, de inglês e computação, criados em parceria com o sindicato Social Democracia. "Vamos inaugurar uma sala de fisioterapia para a terceira idade e estamos fazendo um projeto piloto para 2004 com o Sebrae, para oferecer cursos profissionalizantes voltados para o Carnaval, como marcenaria, marchetaria, soldagem e cenografia", afirma Okabe.

Segundo Edleia dos Santos, presidente da União das Escolas de Samba de São Paulo, mesmo sem ter patrocínio, a maioria das escolas paulistas faz trabalhos com a comunidade. "É uma forma de elas se manterem vivas", afirma. No Rio, não é diferente. "Todas as escolas fazem algum tipo de trabalho social com a comunidade, mas poucas estão estruturadas como a Mangueira e a Beija-Flor", afirma Hiram Araújo, diretor cultural da Liga Independente de Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

O trabalho que a Estação Primeira de Mangueira realiza no Rio pode ser um exemplo de como a escola de samba pode funcionar, e muito bem, o ano inteiro. Em 1987, a escola começou a trabalhar com as crianças da comunidade num ferro-velho desativado ao lado do barracão. Hoje, o lugar é o Complexo Esportivo da Mangueira, um dos maiores espaços ocupados por um projeto social na América do Sul, com 35 mil metros quadrados construídos, que recebe por dia cerca de 2.000 pessoas.

São mais de 21 projetos sociais para todas as idades, que contam com o apoio de parceiros como a empresa Xerox e a Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F). Entre eles, estão o Mangueira Faz Tudo, que prepara jovens de 12 a 18 anos para o mercado de trabalho nas áreas de construção civil e instalação predial; o Dançando para Não Dançar, que dá aulas de balé para 112 crianças na Mangueira e atende em mais oito comunidades no Rio de Janeiro; o Ciep Nação Mangueira, que possui hoje 46 turmas de quinta a oitava série; a Escola Tia Neuma, que oferece ensino básico para 500 crianças, em associação com o Santa Mônica Centro Educacional; um curso de três anos de tecnólogo em informática, em parceria com a UniverCidade; e a escola mirim Mangueira do Amanhã.

"Oferecemos desde a creche até a faculdade", afirma a pedagoga Deise Loureiro Dias, 67, vice-presidente do projeto Mangueira do Amanhã, uma escola de samba mirim, que conta com 150 componentes da bateria e 60 passistas de 7 a 14 anos. O projeto ainda dá bolsa-auxílio de R$ 50 para 20 adolescentes da escola mirim, que aprendem a fazer adereços que futuramente serão aproveitados no barracão da escola grande.

"A Mangueira cultiva valores caros à nossa cultura afro-brasileira, como o respeito aos mais velhos. Até hoje, ela reúne um conselho de sábios para tomar as decisões mais sérias da escola. Essa capacidade de mesclar educação, cultura e entretenimento é admirável. Eles sedimentam um quadro de valores para a juventude que cresce ali", afirma a educadora Regina de Assis, pesquisadora e presidente da MultiRio, empresa de comunicação ligada à Prefeitura do Rio de Janeiro.

Cursos aliados à indústria do Carnaval também têm sido adotados em muitas escolas do Rio de Janeiro. A ONG Semear desenvolve, desde 1999, o projeto Malê, que promove a alfabetização de adultos e oferece cursos profissionalizantes em 29 escolas de samba do Rio.

"O projeto começou quando notamos a falta de mão-de-obra qualificada nas escolas. Muitas delas acabavam contratando gente de fora da comunidade, pois a maioria das pessoas não sabia nem mesmo ler e escrever", afirma Célia Cunha, presidente da ONG.

Neste ano, o projeto Malê beneficiou 650 trabalhadores, dos quais, de acordo com Cunha, 80% saem com emprego garantido nos barracões. O curso de alfabetização dura sete meses e conta com professores indicados pela própria escola de samba, que recebem treinamento na ONG e estruturam o curso a partir de letras de samba e da história do Carnaval. O que não falta é argumento.

     

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