Folha Online sinapse  
30/03/2004 - 02h50

Verbete: Entre a sorte e o azar

SÉRGIO RANGEL
da Folha de S.Paulo, no Rio

Na última sexta-feira 13, em fevereiro, a sorte abandonou os jogadores de bingos no país. Naquele dia, se desenrolou o mais recente capítulo da polêmica história do jogo no Brasil. A divulgação de que Waldomiro Diniz, assessor do todo-poderoso ministro José Dirceu (Casa Civil), havia negociado com o empresário Carlinhos Cachoeira o favorecimento em concorrências, em troca de propinas e contribuições para campanhas eleitorais, desencadeou a maior crise enfrentada até agora pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Reprodução
Um semana após a divulgação da gravação, feita em 2002, quando Waldomiro presidia a loteria estadual do Rio, Lula, ao contrário do que defendia até então, editou uma medida provisória proibindo a exploração de bingos e de máquinas de caça-níquel em todo o país.

A reação veio rápido. Empresários do setor, funcionários e freqüentadores protestaram na hora. A Abrabin, associação nacional dos bingos, chegou a divulgar que 120 mil trabalhadores perderiam o emprego —números apurados posteriormente pela Folha de S.Paulo mostraram que os postos de trabalho nessas casas de jogo são cerca de 70 mil, a imensa maioria informal.

Azar de uns, sorte de outros. Procuradores de vários Ministérios Públicos já haviam denunciado que a contabilidade de alguns bingos servia para legalizar o dinheiro do tráfico, do roubo e da corrupção, além de propiciar a sonegação fiscal.

Em situação semelhante à dos bingos, os cassinos fecharam as portas no país em 1946. No dia 30 de abril, o presidente Eurico Gaspar Dutra acabou com essas casas, que só podiam funcionar na capital federal, então o Rio, e nas "estâncias hidroterápicas, balneárias ou climáticas". Assim como hoje, as loterias e as corridas de cavalo foram toleradas, afora o jogo do bicho, que é ilegal no país.

Criado em 1892 com a intenção singela de incentivar as pessoas a freqüentar o antigo Jardim Zoológico do Rio, o jogo do bicho virou instrumento para acobertar uma série de ilegalidades. Há décadas, os "banqueiros" são assíduos freqüentadores do noticiário policial. Em 1993, 14 dos principais bicheiros do Rio foram condenados a seis anos de prisão por formação de quadrilha armada. No ano seguinte, a descoberta de livros contábeis de Castor de Andrade, um dos líderes da cúpula do bicho, escancarou a forma como os bicheiros distribuíam dinheiro para políticos, policiais e até jornalistas.

Assim como os outros jogos, também os bingos no país sempre foram cercados de polêmica. O primeiro a fechar a cara para os bingos foi o principal ídolo da torcida do Flamengo. No início dos anos 90, Zico, então ministro do Esporte do governo Fernando Collor, tentou emplacar uma lei para modernizar o desporto.

Aproveitando-se das discussões para a aprovação da Lei Zico, o deputado Onaireves Moura, então no PSD, incluiu na proposta original a legalização dos bingos. Usou como argumento a idéia de que o jogo poderia ser usado como fonte de captação de recursos para clubes, federações e confederações esportivas.

A cláusula passou pelo Congresso Nacional e, em julho de 1993, a Lei Zico foi aprovada e entrou para a história como a que legalizou o bingo no Brasil. Para desgosto do ex-jogador, que nunca defendeu a liberalização da jogatina. Na teoria, ou seja, de acordo com a lei, entidades esportivas receberiam 7% do montante arrecadado pelos bingueiros. Centenas de casas de jogo foram abertas rapidamente. Alguns grandes clubes —São Paulo e Palmeiras, por exemplo— investiram alto no negócio, mas logo se endividaram e abandonaram o setor.

Com várias suspeitas de irregularidades pipocando pelo país, a Câmara dos Deputados criou, em 1995, uma CPI. Ao mexer no mar de lama, a própria CPI virou caso de polícia. O então deputado Marquinho Chedid (PSD-SP) foi acusado por um empresário do setor de ter recebido R$ 300 mil para não ser prejudicado pela investigação. Chedid, que integrava a comissão, foi absolvido em junho de 1997.

Embora o relatório final tenha denunciado falta de fiscalização e sonegação fiscal, os bingos continuaram funcionando. Três anos mais tarde, os bingueiros ganharam mais força. Durante a votação da Lei Pelé, o atual presidente do Vasco, Eurico Miranda, na época deputado pelo PPB-RJ, fez a vontade dos empresários e conseguiu aprovar a entrada dos caça-níqueis no Brasil. O Indesp (Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto), órgão ligado ao Ministério do Esporte, ganhou a responsabilidade de fiscalizar a jogatina.

Em 2000, mais um escândalo envolvendo os bingos atingiu Brasília. O Indesp foi o principal envolvido nas denúncias de irregularidades nas autorizações para o funcionamento de bingos, o que acabou gerando a demissão de Rafael Greca, ministro da pasta. No ano seguinte, com a entrada em vigor da chamada Lei Maguito, que vetou novas autorizações para o funcionamento de bingos, o jogo passou a funcionar à custa de liminares concedidas pela Justiça. As últimas autorizações legais foram encerradas em 2002. No ano passado, o jogo já estava fora do controle do governo.

Mesmo sem conseguir controlar os bingos, Lula continuava apostando no jogo como fonte de recursos. Ele planejava legalizá-lo, analisando até mesmo a hipótese de estatizá-lo.

O fato é que, além da série de escândalos que protagonizaram, os bingos pouco fizeram pelo esporte. Do montante que o setor anunciou ter repassado em 2002, 80% não entraram nos cofres das entidades. As associações esportivas declararam à Receita Federal que receberam R$ 18 milhões das casas de jogo. A Abrabin divulgava que havia repassado R$ 93 milhões.

A repercussão causada pelo caso Waldomiro pôs fim ao bingo no país. Pelo menos, por enquanto. Agora, Lula afirma ser contrário às casas e chegou a dizer que regularizar o jogo é "legalizar a bandidagem". Até quando isso vai valer, não se sabe. Os jogadores contumazes que façam suas apostas a respeito do próximo capítulo. n

Sérgio Rangel, 32, é repórter da Sucursal do Rio e só é favorável à legalização dos bingos se o Everest, time de futebol do subúrbio carioca de Inhaúma, for o único beneficiado e conseguir montar uma equipe de "galáticos" como a do Real Madrid.

     

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