Folha Online sinapse  
30/03/2004 - 02h56

Uma viagem a Marte

FERNANDO EICHENBERG
free-lance para a Folha de S. Paulo, de Paris

Você já pensou em visitar o Valles Marineris, um longo canal de 4.000 quilômetros de comprimento (equivalente à largura dos EUA) e seis quilômetros de profundidade? Ou quem sabe o vulcão Olympus Mons, de 21 quilômetros de altura? Se essas atrações marcianas o tentam, você já pode se preparar para a viagem com a ajuda do "guia" de Marte "Sur Mars - Le Guide du Touriste Spatial" (Sobre Marte - O Guia do Turista Espacial), um detalhado manual lançado recentemente na França. O livro, que à primeira vista pode aparentar uma despretensiosa brincadeira, é, na realidade, resultado de anos de trabalho do historiador e sociólogo da ciência Pierre Lagrange, 40, pesquisador do Laboratório de Antropologia do CNRS (sigla em francês para Centro Nacional de Pesquisa Científica).

"Sur Mars - Le Guide du Touriste Spacial", de Pierre Lagrange, com participação de Hélène Huguet (EDP Sciences, € 29)
Estudioso do interesse humano por óvnis e seres extraterrestres, Pierre Lagrange resolveu escrever o guia sobre Marte como uma alternativa aos meios de popularização da ciência, muitos dos quais ele desaprova. Editado em papel de luxo, em 255 páginas fartamente ilustradas, o guia traz uma feliz combinação da informação científica mais recente com o histórico do imaginário terrestre sobre o planeta vermelho. A viagem introdutória vai dos primeiros textos referentes a Marte, datados de 1800 a.C., na Mesopotâmia, dos filósofos gregos e das diferentes polêmicas deflagradas entre astrônomos à volumosa e variada literatura de ficção científica, a filmografia e os diferentes fatos que envolvem o emblemático planeta.

A parte mais original do livro é o "roteiro turístico" proposto por Lagrange. O guia sugere cinco itinerários para a descoberta do planeta e não esquece nenhum detalhe comum aos guias de viagem, como onde ficar, o que levar e os meios de transporte disponíveis.

No seu apartamento-biblioteca parisiense, cercado de mais de 1.500 livros, o pesquisador falou ao Sinapse sobre sua singular aventura extraterrestre. "Depois de um século de literatura popular sobre a invasão de marcianos na Terra, é a Terra que se prepara para invadir Marte", assinala o autor, referindo-se às recentes descobertas anunciadas pela comunidade científica.

Sinapse - Sua intenção, com esse guia, é contribuir para uma outra forma de popularização da ciência?
Pierre Lagrange -
Na maioria dos casos, quando se escreveu sobre Marte para o grande público, se falou bastante sobre geologia, atmosfera etc. Eu sentia falta de ver o todo. Um guia turístico me parecia uma fórmula que serviria bem para misturar os dados científicos com os aspectos culturais.

Sinapse - Qual é a sua crítica à popularização da ciência?
Lagrange -
Na França, popularizar o conhecimento científico significa ensinar às pessoas que são ignorantes coisas que elas desconhecem. Algo como: "As pessoas não conhecem nada de ciência, é preciso ensiná-las". Há um lado estritamente escolar, que considero uma má visão. Eu penso um pouco como o paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould [1941-2002], que acreditava que não se tratava de ensinar ignorantes, mas de partilhar com outras pessoas questões interessantes. Os ingleses, por exemplo, têm maior participação democrática na ciência, e nós, franceses, permanecemos bastante escolares —isso leva à construção de novas mitologias, não à sua supressão.

Sinapse - Qual foi a maior dificuldade desse guia?
Lagrange -
A parte "turística". Há uma enorme quantidade de obras e artigos científicos sobre Marte, mas foi preciso, de uma certa maneira, traduzi-los, transformá-los em dados estéticos, indo da geologia à descrição das paisagens.

Sinapse - Quais são os locais mais atraentes para o turista espacial?
Lagrange -
Há lugares imperdíveis em Marte, como o Olympus Mons, o maior vulcão do sistema solar. Há também o Valles Marineris, o Grand Canyon marciano. O guia sugere a volta no planeta num balão, idéia inspirada em Kim Stanley Robinson, escritor de ficção científica norte-americano que escreveu uma extraordinária trilogia sobre Marte. Atualizei essa viagem com todas as informações que faltavam.

Sinapse - Como esses roteiros foram elaborados?
Lagrange -
Era importante montar as viagens a partir do que mais corresponde à realidade. Coloquei em prática tudo o que é atualmente estudado pela Nasa e pelos cientistas. O objetivo era inventar o menos possível, senão seria ficção científica. Fiz um gênero diferente: a ciência-ficção. Tudo o que há no livro existe de verdade.

Sinapse - Como o sr. vê as recentes descobertas dos robôs da Nasa?
Lagrange -
A história de Marte é bastante complicada. Ao mesmo tempo que temos a impressão de que perseguimos um sonho que não cessa de se distanciar, ou seja, a presença de vida em Marte (há um século, acreditava-se em marcianos), os marcianos não param de diminuir de tamanho e de se perder nas areias do planeta. Mas há esperanças que se mantêm, como a descoberta de água. Marte, no entanto, representa uma busca maior: a idéia de que possa existir um lugar no qual a vida teria aparecido independentemente da Terra é a confirmação de todos os sonhos da humanidade de que não estamos sós. Na história ocidental, esse interesse começou com os filósofos gregos e chegou até a Nasa. Marte tem carregado até agora, da forma mais concreta possível, esse sonho.

Sinapse - O senhor acredita na existência de vida fora da Terra?
Lagrange -
O programa Magellan, da Nasa, vai tentar localizar planetas como a Terra em torno de outras estrelas e detectar atmosferas e gases como metano, nitrogênio ou outros, produzidos por formas de vida. Se encontrarmos isso, terá sido ganha uma parte da aposta. Mas a história está apenas começando. Pessoalmente, acredito numa forma de vida fora da Terra. É como a frase que aparece várias vezes no filme "Contato", de Robert Zemeckis [baseado no livro homônimo de Carl Sagan]: "Se não houver vida em outro lugar, é muito espaço desperdiçado por nada".

     

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