Folha Online sinapse  
30/03/2004 - 03h00

A reforma da discórdia

CÍNTIA CARDOSO
da Folha de S.Paulo, em Nova York

Dois anos após ter sido criada —em janeiro de 2002—, a lei "No Child Left Behind" (NCLB, nenhuma criança deixada para trás), antes saudada como uma revolução no sistema educacional dos Estados Unidos, tornou-se um dos pontos mais quentes do debate que anima a corrida presidencial no país. O presidente George W. Bush, que concorre pela reeleição, usa o programa como vitrine de sua campanha. E John Kerry, o provável candidato democrata, ataca o programa, apesar de ter votado a favor de sua aprovação quando era senador.

France Presse
Crianças em escola de Owensboro, Kentucky (EUA)
O objetivo da NCLB é "diminuir o abismo entre crianças com desempenho alto e baixo, especialmente o abismo existente entre estudantes de minorias e estudantes que não são de minorias", segundo o texto. A nova legislação redefine o papel federal na educação ao determinar que todos os Estados norte-americanos estabeleçam um sistema de avaliação de alto nível para seus alunos e que criem uma forma padronizada de contagem dos resultados auferidos nos testes, para torná-los comparáveis entre as diversas escolas.

O destaque da lei é o incentivo para a melhora do desempenho escolar em leitura e expressão oral por meio do desenvolvimento de programas de apoio pedagógico como o "Reading First" (leitura em primeiro lugar). Esse programa acompanha desde os alunos das classes de pré-alfabetização até os da terceira série do ensino fundamental. Pronúncia, fonética e compreensão verbal estão entre os pilares do "Reading First".

Para apoiar financeiramente o projeto, foi criada uma linha federal de recursos. Mas a concessão das verbas aos Estados se dará mediante uma fórmula elaborada pelo governo.

A principal e mais polêmica proposta do programa é a formatação do tal sistema de avaliação anual dos alunos do ensino fundamental. Cada Estado terá a liberdade para criar e aplicar, a partir do ano letivo de 2005-06, um teste para avaliar a capacidade de leitura dos estudantes e o aprendizado de matemática. Na segunda etapa do programa, os alunos terão também testes de ciências.

Os exames, de acordo com o governo, deverão cumprir dois objetivos. O primeiro será avaliar o nível das escolas. O segundo, oferecer aos pais dos alunos um relatório anual do nível de aprendizado de seus filhos. Com o ranking das escolas em mãos, os pais poderão, por exemplo, escolher outro estabelecimento para seus filhos freqüentarem.

As metas da NCLB são ambiciosas. A lei determina que alunos de todo o país atinjam os níveis de proficiência dos testes dentro de 12 anos. A performance dos estudantes em testes nacionais de leitura tem preocupado educadores e instituições governamentais. Resultados de 2003 mostram que 37% dos alunos da quarta série tiveram rendimento abaixo do nível básico de leitura. Se o desempenho nos exames de seus alunos for ruim por quatro anos consecutivos, a escola poderá ser submetida a troca de dirigentes, substituição de professores, intervenção federal ou mesmo ter sua gestão privatizada.

Margarita Lopez, vereadora democrata da cidade de Nova York, é uma feroz crítica da nova legislação. "A NCLB é uma piada: impõe metas impossíveis de cumprir e não oferece recursos. É demagógica e vazia", disse ao Sinapse. "As escolas mais pobres vão ficar ainda mais desprovidas de recursos, vão ter o número de alunos reduzido. Com o tempo, vamos ter menos escolas nos EUA", completou.

Para James Anderson, especialista em estudos sociais da Universidade de Illinois, o sistema vai privilegiar as escolas que já possuem um padrão intermediário —ou alto— de infra-estrutura. "As escolas das regiões mais pobres, que, em geral, são aquelas com grande concentração de alunos negros e latinos, vão ser prejudicadas por já terem poucos recursos para cumprir essas metas", disse, reiterando os argumentos da vereadora.

Em meio a ressalvas, Gary Orfield, professor da Faculdade de Administração, Planejamento e Política Social da Universidade Harvard, ressalta pontos positivos da lei. "Há mais dinheiro para as escolas pobres, e a distribuição desse dinheiro está mais dirigida. Isso é uma coisa boa. E há o programa dedicado à leitura, que está amarrado a uma maneira muito ingênua de ver a alfabetização, mas pelo menos destina dinheiro para a leitura", afirmou.

O mesmo sistema que avalia os alunos servirá para conferir notas para os professores —outro ponto polêmico da legislação, que tem mais de mil páginas. Os profissionais defendem que o governo deveria dar atenção ao estímulo básico para a categoria: a remuneração. Em Nova York, o salário inicial de um professor de ensino fundamental é US$ 33 mil (R$ 100 mil) por ano, considerado pouco atraente para os padrões da cidade. O governo contra-argumenta que vai destinar US$ 2,8 bilhões ao aprimoramento profissional e vai permitir que as administrações estaduais usem fundos federais para aumentar o salário médio dos profissionais.

Apesar da retórica de liberação de verbas, é o dinheiro o ponto nevrálgico da disputa entre o governo e a oposição. Alguns Estados já começaram a pressionar seus parlamentares para que tentem passar emendas ao NCLB, mas, em um ano eleitoral, poucos acreditam que se consiga algo.

A grande queixa é que a NCLB aumenta as despesas que os Estados devem destinar à educação, enquanto a ampliação dos recursos federais não acompanha essa demanda. Um exemplo: caso pais de alunos de uma escola com sucessivas avaliações ruins decidam transferir seus filhos para outro estabelecimento, o Estado terá de arcar com custos de transporte e com despesas administrativas de redistribuição dos estudantes.

     

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