Folha Online sinapse  
25/05/2004 - 02h46

De volta ao funil

Antonio Arruda
free-lance para a Folha de S.Paulo

No início de março, duas salas de aula de um colégio de São Paulo foram ocupadas por estudantes de direito que estavam prestes a encarar um "provão". Eles, que já haviam passado por vestibulares concorridos e ainda terão pela frente o temido exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), tinham mais um obstáculo no caminho: a seleção para uma vaga de estágio no escritório Demarest e Almeida, um dos "gigantes". Para conseguir uma vaga, os 120 alunos, a maioria entre 18 e 21 anos, tiveram de enfrentar uma bateria de testes.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
O estagiário Rafael Gobbi (sentado), do Machado, Meyer, e Henrique Gallo, recém-contratado pelo escritório
A seleção nos grandes inclui, normalmente, redação e provas de inglês, português, conhecimentos gerais e conhecimentos jurídicos, além de entrevistas com psicólogos e advogados da empresa. Com pequenas variações de escritório para escritório, são essas as etapas pelas quais os futuros estagiários devem passar.

Em alguns casos, os testes de português e inglês são eliminatórios, como no escritório Tozzini, Freire, Teixeira e Silva. O Tozzini também é o único dos "tops" que realiza uma prova técnica, dissertativa, só com questões sobre direito. "Temos de ter o máximo de rigor para avaliar se o aluno sabe escrever bem, se tem fluência em inglês e se domina o que já aprendeu na faculdade", explica Fernanda Coutinho, consultora de RH do escritório.

Nos demais escritórios, em geral, a preocupação maior é com a capacidade do estudante de escrever com propriedade e fluência, independentemente do tema. "Preferimos trabalhar com assuntos atuais, de cunho político, econômico ou social", diz Flávio Gonzaga, advogado responsável pelo recrutamento de estagiários do Machado, Meyer, Sendacz e Opice, no qual os atentados em Madri e as chuvas na capital paulista foram os dois últimos temas. Isso não quer dizer que o conhecimento jurídico não seja avaliado. "Nas entrevistas, conseguimos detectar muito bem o nível de conhecimento sobre direito de cada candidato", diz Abrão Jorge Miguel Neto, do Ávila, Nogueira, Miguel Neto e Aidar Advogados. Diante de tantas exigências, a expectativa dos estudantes não é pequena.

"É como um vestibular: um momento de ansiedade e, até certo ponto, angústia", diz Marina Palma Copola, 19, aluna do segundo ano de direito na USP, que passou no teste para estagiários do escritório Pinheiro Neto. O esforço vale a pena, já que está em jogo a possibilidade de, além de trabalhar em um escritório de renome, ser bem remunerado e ter a chance de ser efetivado como advogado depois de concluída a faculdade e, no futuro, de se tornar sócio na empresa —os grandes escritórios oferecem a possibilidade de participação acionária, dependendo da atuação e do tempo de serviço.

"Desde o primeiro ano da faculdade eu queria fazer estágio. E meu objetivo, desde que comecei, é chegar a ser sócia do escritório", diz Tatiana Rodrigues Nascimento, 24, que entrou no Pinheiro Neto no terceiro ano da faculdade, se formou e atua há um ano e meio como advogada contratada na empresa. "Lembro que fiz o teste no final de 1999 e fui chamada no começo de 2000. Passei o Natal e o Ano Novo na maior ansiedade."

Tatiana, por ter cursado direito na Unip (Universidade Paulista), pode se considerar duas vezes vitoriosa: em São Paulo, a maior parte dos alunos que conseguem estágios nos "tops" são da USP, da PUC e do Mackenzie. Não que seja ponto determinante o aluno estudar em uma dessas faculdades. "Podemos descobrir grandes talentos fora das mais conceituadas, mas é natural, e isso não acontece só no setor jurídico, que o mercado procure profissionais formados pelas melhores universidades", comenta Irene Dias da Silva Cavezzale, uma das advogadas que compõem a comissão de recrutamento de estagiários, criada no Pinheiro Neto há cinco anos —no escritório, são 330 advogados (60 sócios) e 180 estagiários atualmente.

Mas há escritórios, como o Lilla, Huck, Malheiros, Otranto, Ribeiro, Camargo e Messina Advogados, para os quais somente os alunos das três faculdades mencionadas têm chance de fazer a prova. Ou seja: o processo seletivo começa na análise dos currículos. "Levamos em conta até mesmo o colégio onde o estudante cursou o ensino médio, porque precisamos que ele tenha uma formação cultural sólida", explica Beatriz Kestner, também do Pinheiro Neto. Beatriz e Irene, além de Luciana Galhardo, são exemplo de advogadas que começaram como estagiárias e hoje fazem parte do quadro societário do escritório.

Para ter uma idéia do funil por que passam esses estudantes, dos cerca de 1.500 alunos que enviam currículo anualmente para o Pinheiro Neto, 10% são chamados para o teste escrito e apenas 3% vão para a fase de entrevistas. E, dos 113 currículos avaliados no último processo seletivo de estagiários no Machado, Meyer, Sendacz e Opice, apenas cinco conseguiram vaga.

A maioria dos grandes escritórios também dá prioridade aos estudantes que estão cursando o segundo ou o terceiro ano. "Nossa intenção é ter tempo de formar o aluno de acordo com o perfil do escritório. O objetivo é que ele se torne um sócio", explica Orlando Di Giacomo Filho, sócio sênior do Demarest e Almeida, no qual um terço dos sócios começaram como estagiários.

O advogado Henrique Cesar Gallo, 24, começou a estagiar durante o primeiro ano da faculdade. "Por problemas financeiros", diz Gallo, que se formou na PUC-SP. "Comecei em um escritório pequeno, de um amigo do meu pai." No terceiro ano da faculdade, começou a estagiar no Machado, Meyer. Hoje, é um dos 308 advogados contratados da empresa (que tem 206 estagiários).

Rafael Gomes Gobbi, que está no quarto ano de direito na PUC-SP, ainda tem pouco mais de um ano pela frente como estagiário no Machado, Meyer até que possa, quem sabe, ser efetivado. "Sempre tive em mente trabalhar em um escritório grande, mesmo tendo passado por outros menores antes de entrar aqui. Aprendemos muito", diz.

O aproveitamento de estagiários para fazer serviços burocráticos costuma não acontecer nos grandes escritórios. Até porque o salário pago para estagiários pode chegar a R$ 1.400 mensais (o menor salário nessas empresas é de cerca de R$ 700), além de benefícios e, em alguns casos, participação nos lucros. "Não gastaríamos essa quantia com um 'boy de luxo'", comenta um advogado que prefere não se identificar.

Nos "gigantes" da advocacia, o número de estagiários chega a ser quase equivalente ao de advogados. No Lilli, Huck, Malheiros, são 56 advogados (dos quais 80% começaram como estagiários) e 55 estagiários; no Demarest há 300 advogados e 170 estagiários; no Tozzino, Freire, Teixeira e Silva trabalham 326 advogados (191 em São Paulo) e 215 estagiários (63 em São Paulo). "Nossa prioridade é absorver aquele estagiário que teve uma formação dentro da nossa filosofia de trabalho. Entre ele e um advogado recém-formado que não foi estagiário na empresa, ficamos com o que já desenvolveu trabalhos aqui", conta Fernanda Coutinho, do Tozzino, Freire. Abrão Neto é categórico: "Damos preferência ao advogado que estagiou conosco. E não contratamos advogados recém-formados que não tenham feito estágio durante a faculdade".

Se depender da OAB-SP, a cultura de estágio tende a crescer. O atual presidente da entidade, Luiz Flávio Borges D'Urso, encaminhou ao Congresso Nacional, no início do mês, um projeto de lei que propõe que os estudantes de direito possam obter a carteira de estagiário da OAB a partir do segundo ano letivo (atualmente, somente quem está no quarto ou no quinto ano pode tirá-la). Com ela, o estudante pode retirar processo em fórum e assinar petição com o advogado, por exemplo —o que faz com que ele tome contato mais cedo com assuntos estritamente jurídicos e propicia um estágio ainda mais qualificado, segundo D'Urso.

     

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