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29/06/2004 - 02h56

Gilson Schwartz: Matemática não é consenso

Gilson Schwartz
colunista da Folha de S.Paulo

Acabo de ser vítima de uma paixão platônica pela matemática. Nunca fui bom aluno, em vários momentos passei de ano raspando, durante anos tive pesadelos com a estatística da faculdade. Mas também nunca fiquei muito longe dela, mesmo sem paixão.

O raio que me acordou para uma nova relação com a matemática e que tem gosto de amor à primeira vista veio no Epem (Encontro Paulista de Educação Matemática), que aconteceu no início de junho em São Paulo. Mais especificamente, o clarão foi criado pelo debate sobre matemática e cidadania, organizado pelo professor Nilson Machado, da Faculdade de Educação da USP, com a participação do físico Luiz Carlos de Menezes, também da USP. A sala foi lotada por mais de cem professores e por um grupo que ficou escutando do corredor.

Vindos de muitos cantos paulistas e de outros Estados, os professores da disciplina têm uma consciência dramática dos buracos negros criados pela ignorância matemática na sociedade capitalista. Do anúncio que parcela o sonho de consumo em dez vezes "sem juros" aos indicadores de inflação e desemprego, a matemática é indissociável da luta humana pela sobrevivência material e ideológica.

Um número expressivo de professores, no entanto, ainda não estabelece essas conexões transversais. Há quem dê uma aula de teoria de conjuntos com sacis porque é semana do folclore. A matemática como lógica e como linguagem, no entanto, está em tudo.

A natureza corresponde, portanto, a um mundo ideal de números e proporções? Ou estamos construindo um mundo-armadilha, milimetricamente calculado, como um grande mapa de Jorge Luis Borges, para que tenhamos essa sensação de correspondência?

Os primeiros registros de calculabilidade —e, portanto, controle da natureza pela cultura— encontrados pela arqueologia datam de apenas uns 35 mil anos atrás, como testemunham as incisões num osso de babuíno fossilizado, encontrado numa caverna entre a África do Sul e a Namíbia.

As bases etnomatemáticas da civilização (tanto ocidental quanto oriental) existiam em território africano nessas remotas eras. Hoje, Oriente e Ocidente se massacram enquanto no mundo africano se morre de fome.

No Brasil, a matemática da exclusão já vem empacotada pelo Ministério da Educação. Segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o número de alunos com atraso escolar era de 49,4% dos estudantes do ensino fundamental no Nordeste, contra 20,7% no Sudeste e 19,2% no Sul. A média nacional é de 33,9%, ou seja, praticamente um a cada três estudantes brasileiros tem idade para estar em uma série superior à que cursa.

São Paulo é o Estado com a menor proporção de alunos atrasados: 12%. Mas há uma intensa polêmica em torno do modelo de ensino usado para alcançar esse número, o sistema de ciclos (em que não há reprovação).

Matemática não é consenso, mas contexto. Como toda linguagem e como todo valor, seu sentido e seu alcance dependem de muito argumento e permanente negociação.

Gilson Schwartz, 44, economista e sociólogo, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor da Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br).
E-mail: schwartz@usp.br

     

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