Folha Online sinapse  
29/06/2004 - 02h58

2, 3 ou 4 anos em 1

Heloísa Helvécia
enviada especial a Goiânia

É uma corrida de obstáculos: de cada 100 crianças matriculadas, 59 concluem o ensino fundamental, segundo os últimos dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Dos 31 milhões de alunos, 34% amargam pelo menos dois anos de descompasso entre a idade e a série em que estão. Na linguagem dos relatórios técnicos, são "defasados". Na fala dos corredores, "tomaram bomba", "rodaram", "levaram pau". Reprovados dentro e fora da escola, ficaram enganchados em algum nó da rede pública.

Cristiano Borges/Fotonotícia
Sala de aula de uma turma do Acelera em Goiânia

Uma parte desses meninos começa a deixar a turma do fundão. Khesia Priscila Gil da Silva, 12, "goiana do pé rachado", como diz, repetiu a segunda série, mas recusou o veredicto anunciado pela ex-professora e confirmado pelo coro dos primos, que a xingam de "burra". Mudou de escola, saltou duas séries em um ano de aceleração escolar e foi promovida para a quinta: "Não queria nada com aula, sabia nada de nada. Agora vou estudar mais. Se não, vou ser o quê? Vou capinar para a família? Passei —e passo de novo. Meus primos vão ver que repetente também faz sucesso".

De volta ao ensino regular, e já com saudade das "aulas diferentes, de mexer com tinta, mandar carta e montar teatro", Khesia acostumou-se a fazer os "para-casa", mesmo que não sejam tão legais quanto os deveres da classe de aceleração. Ela até ajuda a mãe, que voltou a estudar e pena com as lições da quarta série.

Para sorte de Khesia, Goiás transformou em política pública um programa antimultirrepetência do IAS (Instituto Ayrton Senna). O Acelera dá apoio didático, pedagógico e emocional para que alunos repetentes de 9 a 14 anos recuperem, em um ano, até quatro séries. Também se propõe a regularizar o fluxo escolar. No fluxo ideal, todo ano entrariam na rede pública 3,5 milhões de crianças (a média brasileira por idade, conforme o IBGE) e sairiam, na outra ponta, alunos na mesma quantidade. Mas muitos ficam retidos nas primeiras séries, congestionando o tráfego, inchando as classes e perpetuando o ciclo da ineficiência, que faz da escola a indústria do atraso. Hoje há 5,6 milhões de alunos na primeira série.

Quando o programa chegou a 246 municípios de Goiás, em 1999, os defasados representavam 46% do total dos alunos da rede estadual. Quatro anos depois, o índice chegou a 26%. Das mais de 112 mil crianças que passaram pelas classes de aceleração até agora, 99,4% foram para séries mais adiantadas, de acordo com dados da Fundação Carlos Chagas divulgados pelo IAS. "Mais do que resolver a vida da criança, construímos uma resposta em larga escala. O Acelera é qualidade e quantidade", diz Viviane Senna, presidente do instituto. "Goiás mostrou que é possível atingir 99% de sucesso. A meta, então, não pode ser menos que isso."

Os resultados levaram Pernambuco, Tocantins e Paraíba a adotar a estratégia a partir deste ano. A experiência de Goiás deverá servir para ajudar a implementação das classes de aceleração de aprendizagem nesses Estados. Deverá servir também, segundo a expectativa do IAS, contra as desculpas socioeconômicas, que não ajudam a entender por que a educação não educa. "Se tantos alunos fracassam, o sistema está errado. No entanto, responsabiliza-se a criança: é ela que é pobre, subnutrida e incapaz de aprender. A lógica da miséria não serve de álibi quando há professores capazes de produzir resultados", diz Viviane.

Venerada no Colégio Estadual Edmundo Pinheiro de Abreu, em Goiânia, a professora Maria Aristela Caetano, 51, visita as casas de seus "acelerados", conhece as famílias, as biografias dos alunos. Assim, ela garante a freqüência nas aulas, acompanha os progressos, detecta os riscos. "Não me sinto só professora, educar também pede um papel de mãe, de psicóloga. O programa exige essa doação, é muito trabalho. Mas me dá muito aprendizado."

O método do Acelera é dividido em sete módulos. As tarefas propostas são compatíveis com o estágio das crianças, e as pequenas conquistas são valorizadas, mas isso não quer dizer que os professores sejam paternalistas. "O aluno precisa saber que o sucesso de hoje não garante o de amanhã. Elogios falsos são percebidos, e elogios demais podem ser tão prejudiciais quanto poucos elogios", diz Janaína Duarte Silva, 31, uma supervisora do programa.

Em Goiás, estatísticas e atitudes mudaram muito nesses quatro anos, a ponto de o Estado pretender ser referência nacional em educação. Janaína, que também é professora, diz que sua atuação era outra antes do programa: "Quando acabar, vou voltar para minha turma regular, olhar lição por lição, correr atrás de quem faltar. Não vou desistir de ninguém. Toda criança aprende".

Todas aprendem. Mesmo as que vão à escola "de tuia vazia" (sem comer), as que cruzam longa distância entre zona rural e sala de aula, as que tiveram livro mastigado por cabra ou folha de caderno arrancada para virar cigarro em boca de pai. Mas a surpresa maior foi descobrir que muitos alunos eram também analfabetos. Por isso, Goiás adotou o Se Liga, programa de alfabetização do IAS.

"O Acelera tem mérito e é importante, mas não basta", diz João Batista Araujo e Oliveira, educador, consultor e idealizador do método. Segundo ele, é preciso, além de acelerar os atrasados, limitar a entrada de alunos mais velhos no ensino fundamental e atacar o problema da alfabetização na primeira série. "Não estamos alfabetizando no Brasil, ninguém se preocupa com isso."

Em 2001, em Goiás, 50% dos alunos do fundamental eram analfabetos. No início de 2003, foi detectado que 41% das crianças da segunda à quarta série não sabiam nem ler nem escrever, apesar de cursarem a série correspondente à idade. Ou seja: enquanto o Se Liga alfabetizava e o Acelera recuperava os atrasados, as escolas continuavam produzindo analfabetos.

"É preciso cuidar do ensino regular para fechar essa torneira", diz a superintendente estadual do ensino fundamental em Goiás, Isa Lourdes de Araújo Pitaluga, 56. "É por causa da primeira série que o menino chega à quinta só decodificando, sem fazer inferências, sem entender o que lê." Desde o ano passado, Goiás estendeu a sistemática do programa de aceleração para fiscalizar a freqüência de alunos e professores em todas as primeiras séries do ensino regular.

É a cultura empresarial do gerenciamento aplicada à escola pública. "As escolas não lidam com números. Com monitoramento permanente, podemos identificar problemas, atacá-los com a estratégia certa e chegar a resultados predefinidos", diz Viviane Senna. Por meio de testes-diagnóstico, o programa identifica o "estoque" de alunos a serem atendidos. Também calcula o total de educadores necessários e treina capacitadores. Para cada dez professores há um supervisor, e para cada grupo de supervisores, um coordenador.

Toda semana de aula é acompanhada pelo supervisor, que fecha os números ao final do mês, para a leitura do andamento de cada turma, região, município, Estado. Um software mostra em que lição a criança está, quantos livros leu, quantas vezes faltou.

Toda essa sistematização dá mais trabalho e gera resistências que, segundo a pedagoga Inês Kisil Miskalo, coordenadora do Acelera, são quebradas quando o aluno deslancha. "Os professores reclamam que trabalham muito, mas depois reconhecem que é insubstituível o prazer de ver a turma respondendo ao esforço." Durante o ano de aceleração, as crianças devem ler no mínimo 40 livros. O conteúdo da primeira à quarta série do ensino regular vai sendo introduzido gradualmente, a partir de temas transversais, como "quem sou eu" e "a escola, espaço de consciência".

Os depoimentos das crianças são cheios de "antes" e "depois". Mudou o repertório de Rodrigo dos Santos, 11, agora na quinta série. "Gostei de ler história e de fazer cartaz. Antes, minha cabeça estava no videogame, aí eu repetia." Mudou o ambiente, em casa, para João Abade de Oliveira Neto, 14. "Quando entrei no programa, eu nem lia. Minha mãe e meu pai brigavam comigo. Agora está sossegado." E mudou o ambiente, na escola, para Juliana Martins Rocha, 13: "Antes eu xingava professora, batia em colega. Agora não. Ficou bom de estudar".

Aceleração de aprendizagem não é novidade no Brasil. Em meados dos anos 90, o país começou a despertar para a necessidade de estancar a repetência, que drena anualmente R$ 6 bilhões dos cofres públicos, segundo o IAS. Mas as políticas públicas não decolaram.

Entre 1996 e 2002, o Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) desenvolveu dois métodos de aceleração de aprendizagem: um para as primeiras quatro séries, outro para alunos da quinta à oitava. Os programas, criados inicialmente para São Paulo e o Paraná, esparramaram-se pelo país e beneficiaram cerca de 700 mil alunos. "Nossa filosofia não é tomar o lugar do Estado e ficar eternamente nas escolas. Fortalecemos as equipes locais para que assumam o trabalho", diz América dos Anjos Marinho, 56, pesquisadora do Cenpec. Goiás ainda adota o sistema do Cenpec para defasados de quinta a oitava série, que recupera até quatro anos de atraso em dois anos de aulas, mas o número de atendidos é reduzido.

Uma das causas do fracasso escolar seria a não-adoção do sistema de ciclos nas escolas, segundo pedagogas do Cenpec. "Apenas 20% da rede do Brasil está organizada em ciclos, o resto é seriação com reprovação, que produz levas de alunos com distorção idade-série", diz Zoraide Faustinoni, 55, da equipe de currículo e escola do Cenpec. "Dizer que tem aluno analfabeto por causa do ciclo, me desculpe. Está analfabeto porque a escola não ensina."

Para o educador João Batista Araujo e Oliveira, essa discussão foge do problema estrutural. "Num país onde 50% dos alunos não têm competências compatíveis com a série em que estão, a promoção automática pode resolver as estatísticas, mas não a aprendizagem. Confiar na eficiência estatística para avaliar políticas públicas de educação é muito ruim", diz. Oliveira criou o programa de aceleração do IAS, mas "largou tudo" para pesquisar alfabetização assim que descobriu o enorme contingente de analfabetos nas escolas.

Segundo América dos Anjos Marinho, o professor da rede pública só sabe lidar com o aluno ideal: "O professor recebe um aluno com dificuldades como se não fosse problema seu, o encosta no fundo da sala. Não sabe adequar as atividades aos diferentes ritmos na sala de aula e, por isso, alija quem é mais lento".

Isa Pitaluga reconhece que é um choque para a criança sair das classes de aceleração —que têm ambientação, dinâmica e material didático especiais— e voltar a uma série regular. "Ela sofre, às vezes até deixa a escola. Um ano é pouco para recuperar a auto-estima", diz. Segundo ela, o professor da quinta série nem sempre está pronto para dar atenção ao promovido pela aceleração.

"O aluno sai precisando ainda de cuidados na matemática. Mas, se não perdeu aula, se fez deveres e leu os livros, tem condição de enfrentar a quinta série. Só que agora ele é mais falante, mais participativo. Nessa volta, sente o baque e vai cobrar do professor. Vai querer mapa, livro e cartaz na sala dele", afirma.

Para Viviane Senna, o acelerado tem condição de superar o impacto de voltar ao sistema regular: "Nem tudo é lindo no programa, precisamos acompanhar para ver se a criança não vai estacionar lá na frente. Mas ela ganha resistência à frustração".

Fátima dos Santos Souza, 38, supervisora do Acelera em Goiânia, aposta na vitória dos ex-defasados: "Trabalhamos com eles temas que despertam a consciência crítica. Podem não ser dez em matemática, mas a capacidade de reflexão a gente garante".

     

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