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27/07/2004 - 03h28

Perfil: Ao vencedor, as cenouras!

Deborah Giannini
free-lance para a Folha de S.Paulo

Jairo Vidal Vieira, 52, só come cenouras por obrigação. "Não sou muito chegado, não." Mas o cientista passa o dia trabalhando com elas. Engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) desde sua fundação, em 1973, ele foi o responsável por uma revolução no cenário da cultura do legume no país. Tanto que acaba de ser laureado com um prêmio de R$ 100 mil da Fundação Conrado Wessel (FCW), espécie de Nobel brasileiro.

Lula Marques/Folha Imagem
Jairo Vidal, na fazenda da Embrapa, onde desenvolveu a cenoura capaz de crescer no Brasil

"Na hora em que recebi o telefonema informando do prêmio, pensei que fosse trote. Fiquei quietinho na minha sala. Falei para a minha senhora, e ela disse: 'Você toma cuidado, que isso é trote mesmo!'", conta Vidal. Mas não era. O mérito do pesquisador, segundo a comissão julgadora da FCW, foi ter desenvolvido uma variedade de cenoura, em 1981, capaz de ser produzida em todas as épocas do ano e em todas as regiões do Brasil.

Até a "nova" cenoura conquistar os campos do país, o legume era plantado com sementes importadas. As espécies "estrangeiras", já que o vegetal é típico do clima temperado, não podiam ser cultivadas o ano todo, apenas no inverno, o que elevava o preço do produto. Além disso, por conta da adaptação ao novo clima e ao novo ambiente, exigiam grande quantidade de agrotóxicos para evitar doenças e garantir a safra.

O empenho de Vidal foi em desenvolver uma espécie brasileira, que pudesse ser cultivada -e colhida- também no verão, uniformizando a oferta de cenouras ao longo do ano e estabilizando seu preço. O resultado foi um legume resistente ao calor e a doenças e com maior teor de carotenóides, que, quando ingeridos pelo organismo, se convertem em fonte de vitamina A.

Plantar cenouras, então, tornou-se um processo simples e eficaz. Com a redução dos custos e a espécie mais forte, aumentou-se a produtividade. A cenoura tornou-se uma opção a mais para os agricultores e, em duas décadas, fez surgir novas áreas de plantio, gerando cerca de 150 mil empregos, segundo estimativa da Embrapa. "Hoje nós produzimos cenoura com o mesmo nível de eficiência dos países mais avançados do mundo. Somos referência mundial em termos de resistência ao calor e a doenças", afirma Vidal.

Raio-X

Nome: Jairo Vidal Vieira
Nascimento: 21 de maio de 1952
Família: casado com Rita de Cássia, 51, e pai de Rafaela, 24, Leandro, 22, e Ana Luiza, 20
Formação: engenheiro agrônomo
Ocupação: pesquisador da Embrapa na área de melhoramento de hortaliças
Hobbies: assistir à TV, cozinhar e estudar

A primeira variedade criada por Vidal, a "brasília", corresponde atualmente a 85% dos plantios realizados no país. A "alvorada", que chegou ao mercado em 2000 e tem características ainda mais aprimoradas que a irmã mais velha (como teor de carotenóides 35% maior), também foi criada por ele, ocupa 8% das áreas e já é utilizada por 100% dos cultivos orgânicos.

Mas como saber se a cenoura que você come é uma autêntica "brasília" ou uma "alvorada"? "A cenoura do tipo 'brasília' tem o miolo branco; a 'alvorada' tem o miolo vermelhinho."

Os nomes das variedades, segundo o engenheiro agrônomo, foram escolhidos em referência à localização em que as sementes foram geradas, na fazenda da Embrapa, a cerca de 50 km da capital federal. "Estamos precisando de sugestões de nome para o próximo lançamento", brinca o pesquisador, atualmente empenhado na criação de minicenouras, similares às "baby carrots" americanas.

Nascido em Rio Pomba (MG), Vidal não cresceu rodeado de livros, mas de vacas e hortaliças. Morava numa fazenda, onde seu pai vivia da produção de leite, e estudou a vida inteira em colégios agrícolas. "Sem dúvida isso me deu um diferencial enorme. Hoje, muita gente que procura a área de agronomia é da cidade. No colégio agrícola, você é obrigado a participar de atividades como tratar de boi, limpar cocheira, cuidar de horta. Você acaba ganhando mais prática e vivência na área", afirma.

Quando começou a desenvolver essas variedades de cenoura, Vidal passava horas dentro de uma geladeira, onde avaliava a qualidade do legume. Hoje ele permanece mais tempo dentro de um escritório, mas ainda considera primordial a pesquisa, literalmente, de campo. "Planta não fala, então você só vai descobrir se aquela é boa se for atrás e observar o que está acontecendo. Se você estiver dentro de uma sala, a planta que é boa não vai dizer: 'Olha, sou resistente a essa doença e tenho tal característica que interessa'."

A "brasília" nasceu do cruzamento dos melhores exemplares de cenouras do sul do Brasil em termos de tolerância ao calor, resistência a doenças e produtividade. "Não tem nada a ver com produto transgênico. Também não houve cruzamento de espécies, não misturei cenoura com pepino, por exemplo. O que fiz foi um processo de melhoramento comum, ou seja, peguei uma determinada população de cenoura, escolhi as que tinham mais caroteno e deixei esses indivíduos cruzarem. Eles produziram os filhos, eu selecionei os filhos que tinham mais caroteno, produzi os netos, selecionei os netos... Tudo numa escala de aumentar a quantidade de raiz com qualidade boa. São variedades de cenoura, mas é tudo cenoura", afirma.

Graças a esse resultado, também foi possível reduzir em quase 200 toneladas por ano o veneno usado em seu cultivo. "A cenoura, antigamente, era muito cara. Hoje é uma das hortaliças com menor variação de preço, que gira o ano inteiro em torno de R$ 1 por quilo, o que corresponde a US$ 0,30. Nós devemos ter a cenoura mais barata do mundo. Nos EUA, o preço é US$ 2 por quilo. Isso facilitou o acesso da população ao produto, fonte de vitamina A, que previne uma série de doenças, principalmente as relacionadas à visão, à pele e ao cabelo", diz Vidal, que aponta o preço final do produto como um dos benefícios sociais da pesquisa.

Mas os tais benefícios sociais não param por aí. Como o próprio pesquisador lembra, "tem muita gente que estruturou a vida e criou filhos" graças à cenoura "brasília". "Cultivar cenoura garante emprego porque é uma atividade de baixo risco. Você não vai ficar rico de um dia para o outro, mas também não irá quebrar", afirma. As maiores regiões produtoras de cenoura do país - São Gotardo (MG) e Irecê (BA)- só conseguiram esse posto graças às sementes nacionais. "São pequenos produtores que trocaram o cultivo do feijão, que dá apenas numa determinada época, pelo da cenoura, que pode ser plantada 365 dias por ano."

Vidal também não ficou rico do dia para a noite, mas se lembra com nitidez do dia do lançamento de sua cria: "Era 29 de março de 1981. É engraçado porque é o mesmo dia em que minha mulher e eu, dez anos antes, começamos a namorar", conta. Segundo ele, um pouco antes do evento, produtores começaram a invadir a unidade para roubar a semente. "Isso aconteceu porque a semente era boa e ainda não estava disponível no mercado. As primeiras quantidades foram vendidas em leilão", conta.

Depois de "espalhar sementes pelo Brasil", voltou a Viçosa (MG), onde havia feito graduação e mestrado, para fazer doutorado. Mais tarde, em 1995, foi convidado para um pós-doutorado no Texas (EUA). "Foi uma fase difícil da minha vida. Eu me senti explorado porque estava aprendendo pouca coisa e trabalhando como peão. Nos EUA, você tem de entrar na programação do laboratório da universidade, e não o contrário. Mas fez parte de um aprendizado, pois boa parte dos processos de selecionar cenoura que vi lá eu adaptei para nossas condições."

Vidal brinca que seu conhecimento sobre cenoura, quando entrou na Embrapa, era o mesmo que tinha sobre avião a jato: irrisório. "Na época, o chefe da unidade me disse: 'Você vai mexer com cenouras'. Podia ter sido batata, tomate, qualquer outra coisa. Eu respondi: 'Mas nunca mexi com isso'. Ele me disse: 'Estuda'. Então eu comecei. Parece que deu certo."

Aliás, "dar uma estudadinha", em suas próprias palavras, é uma de suas ocupações favoritas. Além disso, ele gosta de atividades simples: cozinhar aos domingos e assistir à TV. Embora seu trabalho tenha resultado numa descoberta brilhante, o pesquisador descreve o processo como se não houvesse mistério. "Se você tiver foco, souber o tipo de produto que quer, você consegue. Porque é um processo de método, e os métodos de seleção são antigos, não há nenhum segredo. É preciso ter disciplina, um pouquinho de conhecimento genético, um pouquinho de computador e muita persistência."

Na casa do pesquisador, apesar do exemplo do pai, nenhum de seus filhos se animou a seguir seus passos. Relações internacionais, direito e informática foram as graduações escolhidas por Rafaela, 24, Leandro, 22, e Ana Luiza, 20, respectivamente.

Extremamente caseiro, Vidal não troca o aconchego do lar por grandes badalações. E isso se estende à vida profissional. Apesar de já ter recebido propostas de emprego de companhias privadas, prefere continuar trabalhando para o governo. "Empresa privada é muito imprevisível. Amanhã a firma é vendida, e a área em que você trabalhava deixa de ser prioritária", afirma.

Tão duradoura quanto a relação que tem com a Embrapa é a união com a também agrônoma Rita de Cássia. São 29 anos de casamento. "Ela tem uma série de vantagens em relação a mim. Ela sabe mexer com gente, e eu só sei mexer com planta."

Sua próxima missão na Embrapa está ligada a melancias. Será que o pesquisador vai criar, finalmente, uma fruta sem caroço? "Pode até chegar a esse ponto, mas o objetivo é criar um material resistente às doenças", afirma.

Mesmo depois do prêmio, Vidal segue levando seu dia-a-dia sem mudanças. "Não imaginava receber um prêmio com um recheio desses. É apavorante. Pena que meu pai não está aqui para ver, ele faleceu em janeiro. Ele ia gostar 'pra daná'."

     

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