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27/07/2004 - 03h46

Leituras Cruzadas: História, ciência e... comida

Luiz Horta
especial para a Folha de S.Paulo

Numa charge publicada na revista "The New Yorker" de 30 de julho de 2001, a mulher diz para o marido: "Se [o pacote] fala para adicionar água e sou eu quem a adiciona, estou cozinhando". Teremos chegado no século 21 à cozinheira-robô dos Jetsons? Felizmente não. Se é verdade que o ato de cozinhar agora pode se limitar simplesmente a regular o termômetro do microondas e esperar, não podemos deixar de lado todos os séculos de história que nos trouxeram até aqui.

Fotos Divulgação
Criação de Andoni Adúriz com base em verduras e, de Ferran Adrià, doce de manga com baunilha

Em todo período, o homem se acredita no auge da civilização, olha para trás com certo desprezo ou com uma complacência de piedade ("Imagine que eles tinham que caçar o bicho, depois fazer o fogo para assá-lo"). Não somos diferentes. Mas a verdade é que, de fato, pensamos que tínhamos chegado ao que parecia um certo esgotamento dos rumos para onde seguir. Todos os produtos pareciam já experimentados e nada mais havia para conhecer. A expansão gastronômica pareceu bater na parede. Tudo tinha sido comido, de todas as formas, com todos os molhos. O tal fim da história que se anunciou nos anos 90 do século 20, mais por tédio que por tecnologia, também parecia ter chegado à gastronomia.

Onde começou essa longa jornada até a culinária contemporânea? Certamente o primeiro "equipamento" culinário foi o fogo, que possibilitou ao homem modificar um alimento cru, retirado da natureza, e transformá-lo, por calor, adição ou remoção de água, em outra coisa. Foi ele que assou a caça e permitiu fundir o ferro, que moldou a faca e, daí para a frente, panelas, fogões, pratos, cadeiras desconfortáveis e taças de design inadequado.

Então veio o sal, que temperou a carne, como conta Marc Kurlansky em "Sal, uma História do Mundo" (Senac São Paulo, 464 págs., R$ 60). Mas, conta o autor, o sal, que motivou guerras e valeu como moeda de troca, terminou sua história como o vilão da pressão arterial. O historiador alemão Heinrich Eduard Jacob ("Seis Mil Anos de Pão", Nova Alexandria, 592 págs., R$ 68) defende que uma revolução ainda maior aconteceu com o surgimento da agricultura. O sujeito parou de zanzar daqui para ali, teve tempo de plantar e esperar para colher, aprendeu a lidar com rudimentos de hidráulica, irrigou, colheu e moeu o trigo e fez pão.

No Brasil, Câmara Cascudo —cujo clássico "História da Alimentação no Brasil" foi reeditado pela Global Editora (960 págs, R$ 98)— volta ao fogo como elemento indispensável à culinária: "Normal e genericamente, o alimento era assado, tostado e, em menor escala, cozido ou passado pela fervura. Carne crua não deixou vestígios positivos na dieta ameríndia. Deixaram ao brasileiro o conceito universal e milenar de que a comida quente é que sustenta a gente. Esfriou, estragou". Para acentuar tudo isso, o historiador Felipe Fernández-Armesto, em seu "Comida, uma História" (Record, 364 págs., R$ 52,90), afirma que a única coisa que ainda consumimos viva e crua é a ostra.

Assim, logo que o homem pôde variar um pouco o cardápio, começou a provar novidades. O brilhante crítico Jeffrey Steingarten, da revista "Vogue", diz em "O Homem Que Comeu de Tudo" (Companhia das Letras, 496 págs., R$ 57,50), com uma boa dose de ironia: "Eu não quero subjugar a natureza, nem enfrentá-la, quero comê-la". (Do mesmo autor, não perca a tradução de "It Must've Been Something I Ate", que a editora publica ainda neste ano.)

O ser humano é o único animal que elege o que vai comer com antecipação. Resolvida a necessidade, ampliou seu mundo de alimentos por curiosidade (digamos "gourmandise"). O hábito de pôr na boca frutinhas desconhecidas para saber seu gosto deve ter levado a muitas mortes por envenenamento, mas é um dos responsáveis pela ampla escolha que temos hoje.

E aí chegamos ao mundo mapeado, tudo experimentado. Para a encruzilhada em que a gastronomia tinha se metido, o fim das novidades, uma resposta já vinha sendo gestada, a resposta que daria uma sacudida no marasmo. Ela veio de um casamento bastante anunciado: a ciência deu definitivamente as mãos ao cozinheiro. Ou melhor, o cozinheiro vestiu o avental do cientista, e o cientista empunhou a panela do chef. Eis o novo cozinheiro do século 21, que pesquisa o limite dos materiais, os tempos cronometrados das receitas, o calor exato da chama do fogão. Cerca-se de manuais de biologia, de especialistas em conservação de alimentos, de materiais usados nas naves espaciais.

Ferran Adrià (www.elbulli.com), o mais badalado chef do momento e dono de um pequeno restaurante no interior da Espanha, transformou o líquido em sólido, o quente em frio. Apareceu em cena quando ninguém sabia mais como variar: passou a lagosta por um sifão, fez uma espuma e ainda criou um capelete de pele finíssima de frango e o recheou com a tal espuma.

Percebeu que a receita de algo tão tradicional no seu país como uma paelha (que consiste em fritar alhos e tomates, acrescentar arroz, colocar camarões fritos, açafrão e por aí afora) poderia ser remodelada. Em partes, a receita já era a paelha em forma virtual, sua promessa. Serviu o arroz em forma de espuma, o tomate em forma de sorvete, o camarão em forma de um mero caldinho, o alho em um purê delicado. O prato virou uma espécie de conjunto de "pixels" que, vistos juntos, formam uma imagem. Mas não necessariamente tudo está ali, e a sensação gustativa é quase a mesma —sem a forma, com uma outra textura.

É óbvio que há um pacto de credibilidade implícito nisso, e nem ele pretende substituir a refeição tradicional por seus achados (Adrià só permite que se vá uma vez por ano ao seu restaurante, para não enjoar o freguês). Eu sei, você sabe, que, se eu coloco uma taça de vinho, um punhado de uvas merlot, um pedaço de carvalho e um mapa da França em cima da mesa, tenho uma instalação artística, mas não um vinho bordeaux. A proposta de desconstrução de Adrià foi entendida, curtida, imitada. Descobriu o humor latente nas pessoas fatigadas pela grande cozinha pomposa.

As relações cada vez mais íntimas entre cozinha e ciência também podem ser conhecidas por ampla (e as vezes contraditória) bibliografia. Robert L. Wolke, em "O Que Einstein Disse ao Seu Cozinheiro" (Zahar, 299 págs., R$ 39), é divertido e dá dicas sobre pequenas dúvidas da cozinha doméstica. O autor mantém um site com suas colunas para o jornal "The Washington Post", que podem ser acessadas gratuitamente em www.washingtonpost.com. Há também Hervé This ("Um Cientista na Cozinha", Ática, 240 págs., R$ 28), mais sério, mas bem instrutivo. E o mestre das minúcias, um cientista de fato, que vai até as alterações das moléculas dos alimentos (mas sem perder a ternura e o humor): Harold McGee, com "On Food and Cooking" e "The Curious Cook" (ambos da Macmillan, ainda sem tradução).

Depois que todos os conceitos tradicionais da culinária foram para o espaço, como ficamos? Pois mesmo a ciência tem seus limites. Da supertecnologia, a comida teve de renascer.

O chef basco Andoni Adúriz (www.mugaritz.com) parece ter conseguido achar a fórmula para fazer a pós-cozinha: usa a técnica ao máximo, mas oculta sua presença com obsessão. Como Cézanne, que pintava as mesmas maçãs ou a mesma montanha inúmeras vezes, sob variadas luzes e horas do dia, Anduriz vai mexendo num simples ovo por horas, até que ele seja um ovo hiper-real, em que nada do original sobra, exceto a sua totalidade.

Complicado? Complicadíssimo, um doloroso esforço de recriação do que já está feito. Uma tentativa de refazer a natureza em cada prato, em que a mão humana não apareça, embora a intervenção sobre o produto tenha sido brutal e em todos os ângulos possíveis. Quem comeu esse ultra-ovo de Adúriz —o arquétipo do ovo, como se fôssemos gregos clássicos comendo essências— na sua visita a São Paulo em fevereiro passado sentiu que algo está acontecendo em Donostia (norte da Espanha).

As duas pontas da história da gastronomia se unem no presente: aquele homem primitivo curioso, que jogou sua caça crua sobre a fogueira, deixou-a tostar um pouco e acrescentou sal e uma folha de louro já estava empiricamente fazendo ciência para aumentar seu gosto por comer. Na volta à comida com cara de comida, o ciclo se completa. Por sorte não chegamos à promessa horrível da ficção científica de uma pílula nutritiva. Comer ainda é prazer. Ou, como diz François Simon, o temido crítico de restaurantes do "Figaro" (www.figaro.fr, coluna publicada às quartas-feiras), "comer é um sentimento".

Luiz Horta, 46, é jornalista. Acaba de publicar, como organizador, a coletânea "O Melhor da Gastronomia e do Bem Viver" (DBA Editora). Está sempre pensando em vinhos e paparicando sua gata Frederica, não exatamente nessa ordem.

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  • Leia trecho de "História da Alimentação no Brasil"

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