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31/08/2004 - 03h24

Leituras Cruzadas: Vestir, beber e resistir

Haroldo Ceravolo Sereza
especial para a Folha de S.Paulo

"Resistência é um conceito originariamente ético, e não estético." É assim que o crítico literário Alfredo Bosi inicia o capítulo "Narrativa e Resistência", que integra o livro "Literatura e Resistência" (Companhia das Letras).

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Em 1947, Christian Dior apresenta o "new look", que ressalta a mulher glamourosa e marca o fim da influência da Segunda Guerra na moda
A frase orienta as leituras deste texto. Não porque as questões abaixo sejam sempre estéticas ou porque estejam baseadas no trabalho de Bosi, mas porque os livros citados daqui por diante permitem enxergar de um modo mais amplo e, talvez, mais completo a resistência à força, ao poder, à ocupação, ao próprio tempo em que se vive. O banal pode esconder uma força que nem sempre é reconhecida —uma força que está registrada tanto na história de roupas, bebidas e comportamentos como na das batalhas, mesmo em tempos de ocupação.

"Moda & Guerra - Um Retrato da França Ocupada" (Jorge Zahar Editor, 272 págs., R$ 43), de Dominique Veillon, por exemplo, é um simpático estudo (cuja tradução para o português, um tanto truncada, acaba deixando a leitura menos prazerosa) que procura enxergar nas roupas do cotidiano francês e no mundo da alta-costura os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Em linhas gerais, Veillon elenca elementos daquela resistência —cotidiana, limitada, pouco heróica e, num certo nível, aparentemente ineficaz— que as pessoas comuns mostram-se capazes de realizar diante de uma violência.

Uma resistência à hegemonia, antes de tudo. Que tem sua importância, entre outros motivos, porque permite às pessoas viver e manter alguma dignidade e, sobretudo, identidade, à espera de momentos mais propícios para o enfrentamento direto. No caso da obra de Veillon, essa resistência está profundamente ligada ao imaginário feminino, mais distante dos campos de batalha e mais associado aos esforços de guerra daqueles que não vão ao front.

Algumas das mudanças no modo de vestir na França começam antes mesmo que faltem tecidos de qualidade para os costureiros, conta a autora. Em meados de 1940, por exemplo, logo após a invasão alemã, começa o racionamento de gasolina: "Com isso, a população é obrigada a improvisar com os recursos disponíveis e se adaptar à situação. Sem automóveis, a bicicleta se torna o meio de locomoção mais difundido em toda a França". São organizados concursos para escolher a melhor roupa para andar de bicicleta, e o short e a saia-calça ganham espaço. As mulheres adotam trajes masculinos, mas a revista "Marie Claire" tenta impor um limite, ao definir os dez mandamentos da parisiense: "Usarás calça comprida apenas de bicicleta".

"Moda & Guerra", de Dominique Veillon (Jorge Zahar Editor, 272 págs., R$ 43)
Esse é o lado mais pitoresco, mas a moda francesa teve mesmo de negociar e dizer não, ainda que com bastante cuidado, para os alemães. Em março de 1941, um jornal alemão publicado em francês explicava: "Até agora, Paris foi o olho do mundo no domínio da moda, mas os criadores do Sena ficaram perturbados em seu juízo do verdadeiramente belo, bom e conveniente... A moda parisiense deve passar por Berlim antes que uma mulher de bom gosto possa usá-la". O presidente da câmara sindical da moda, Lucien Lelong, acaba sendo escolhido para representar o setor e negociar em Berlim para evitar que os alemães se apoderassem "de uma indústria prestigiosa, eminentemente francesa". Como diz Veillon, ele faria de tudo, até mesmo estabelecer certa cooperação com os alemães, para que a alta-costura se mantivesse.

Uma das muitas informações interessantes apresentadas pelo livro é a de que os principais jornais diários franceses mantiveram suas páginas semanais de moda durante o conflito —seria como se o Brasil fosse invadido, e os editores decidissem manter as páginas dedicadas ao futebol, mesmo com a diminuição do número de campeonatos e da suspensão da Copa do Mundo.

Como a imprensa é uma fonte fundamental para a análise da autora, "Moda & Guerra" permite, numa leitura indireta, acompanhar o vaivém do discurso das revistas femininas —o que, muitas vezes, fica mais interessante do que as questões da moda. Elas são, nesse momento, um espaço de formação de leitoras para os novos tempos de penúria, de falta de alimentos e de precariedade no vestir, uma vez que tudo começa a ser racionado. Uma imprensa que dá lições de sobrevivência e, algo que Veillon parece não querer reconhecer, o que enfraquece bastante a obra, também de um inquietante conformismo.

Muitas outras pequenas histórias são contadas em "Moda & Guerra", ilustrando o dia-a-dia dessa pequena batalha ideológica em que os franceses se engajaram. O livro, contudo, é inferior a uma outra obra dedicada a um tema aparentemente secundário durante a Segunda Guerra Mundial, mas igualmente francês: a guerra pelo vinho.

"Vinho & Guerra", de Don e Petie Kladstrup (Jorge Zahar Editor, 256 págs., R$ 32)
"Vinho & Guerra - Os Franceses, os Nazistas e a Batalha pelo Maior Tesouro da França" (Jorge Zahar Editor, 256 págs., R$ 32), escrito pelo casal Don e Petie Kladstrup, cujo sucesso no Brasil alimentou a edição do livro de Veillon, tem um perfil semelhante àquele sobre a moda, mas é mais cuidadoso na pesquisa e faz menos digressões apenas ilustrativas. O resultado é que se pode perceber melhor quando de fato os franceses usaram a fabricação de vinho na resistência à ocupação —as adegas foram, muitas vezes, usadas para guardar armas para os rebeldes que combatiam contra o exército de Hitler, e tonéis de vinho esconderam milicianos.

As melhores histórias, que mostram como os franceses prezavam o que produziam e como isso os ajudou a se sentirem capazes de imaginar o país novamente livre, também têm seu lado prosaico. Os Kladstrup narram com muito tempero, entre outros eventos, as estratégias usadas pelos franceses para esconder o melhor vinho.

No final da guerra, ao atingir o chamado Ninho da Águia, retiro de Hitler em Berchtesgaden, um soldado francês, Bernard de Nonancourt, foi chamado pelo oficial comandante para escalar, com outros homens, o pico de quase 2.500 metros. Sua missão era avaliar os vinhos que o líder alemão supostamente guardava.

"Havia todos os grandes vinhos de que eu ouvira falar, cada safra legendária", disse o soldado, segundo os autores. "O que realmente me ficou na lembrança", contou o militar, "foi o Salon de 1928, aquele champanhe inesquecível. Era excelente e só havia quantidades mínimas dele."

De repente, Nonancourt começou a rir. Parte do champanhe "era pouco mais que zurrapa". Havia enormes números de garrafas com a indicação "Reservado para a Wehrmacht". Outras tinham sua qualidade indicada apenas por categoria —A, B ou C. Representavam um terço de todas as vendas de champanhe de 1937 a 1940, uma quantidade que a Wehrmacht requisitara para "manter o moral de suas tropas". Essas garrafas, Bernard sabia, eram as que os produtores usavam para se livrar do pior champanhe.

Fazer o invasor beber o pior, sendo obrigado pela autoridade de conhecedores a ter de afirmar estarem diante do melhor, surge, assim, como uma forma de reafirmar as próprias qualidades, de deixar claro que há alguns prazeres que os mais fortes não podem apreciar —o que os faz mais fracos.

Os franceses também levantaram paredes falsas, jogaram pó sobre garrafas novas, para que parecessem velhas, cobriram os piores vinhos com os melhores e, inversamente, puseram os melhores vinhos nas piores garrafas. Mas também quiseram —ou tiveram de—, em determinados momentos, aceitar a dominação e permitir que os alemães bebessem bons vinhos.

"Homens de Preto", de John Harvey (Editora Unesp, 340 págs. R$ 48)
Também tratando de um aspecto secundário da Segunda Guerra Mundial, há uma discussão bastante interessante em "Homens de Preto" (Editora Unesp, 340 págs., R$ 48), de John Harvey. O livro é um grande estudo sobre a razão de o preto ter se imposto como uma cor que representa o poder e o universo masculino.

No trecho dedicado ao século 20, Harvey aponta a evolução do preto como a cor das tropas de choque de Hitler —as SS. "Quando se reagruparam em 1925, o ano em que as tropas de choque adotaram o marrom, foi formada a nova SS, a Schutzstaffel (esquadrão de proteção), que também vestia marrom, mas que se demarcava pelo quepe preto (com o emblema da caveira), pela gravata preta e por uma borda preta na braçadeira: um toque de preto distingue, assinalando o fato de que os nazis tinham uma elite." A distinção foi completada, segue ele, em 1933, "quando a nova SS, agora comandada por Himmler e passando de centenas a milhares de integrantes, adotou o famoso uniforme totalmente preto".

O preto, a não-cor que se tornou também a cor dos nazistas e tem uma longa trajetória até se tornar a cor que simboliza o poder (na Idade Média, escreve Harvey no início da obra, "os homens se vestiam esplendidamente se possuíam meios para tal; mesmo os pobres vestiam várias cores"), é também a cor de movimentos rebeldes, como o punk. "O punk expressava uma anarquia verdadeira, optando pela feiúra e pela sátira, através do exagero, da imagem que acredita que a classe média tenha deles: pontudos, perfurados, brutalizados, mal-educados. O punk expressava uma anarquia verdadeira e usava cores selvagens, em tons ácidos, para atingir o olhar. E também o punk, desde o início, fez seu próprio uso do preto."

Harvey não apresenta uma explicação única ou suficiente para entender por que movimentos organizações repressivas e movimentos rebeldes escolham a mesma cor, talvez porque o jogo entre repressão e liberdade, entre poder e resistência, não caminha sempre por trilhos muito claros.

Franceses trocando de roupas e escondendo seus vinhos, rapazes e garotas espetando o cabelo com sabão: o prazer permitido orientando a resistência, até que a liberdade ganhasse mais espaço.

Haroldo Ceravolo Sereza, 30, é jornalista e editor. Já viveu em Paris, como correspondente da Folha de S.Paulo, mas continua a se vestir mal, em várias cores.

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