Folha Online sinapse  
31/08/2004 - 03h28

Monitor essencial

Liane Faccio
free-lance para a Folha de S.Paulo

O visitante da 26ª Bienal de Artes de São Paulo, que começa no dia 26 de setembro, dificilmente deixará de ver já no térreo do prédio do Ibirapuera uma das maiores obras da exposição: um elefante e um tigre empalhados, trazidos ao Brasil por um dos artistas que fazem parte da representação da China, Huang Yong Ping.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Estudantes na primeira aula para monitores da próxima Bienal

Dito e, principalmente, visto assim, o trabalho causará estranheza à maioria, a menos que possa ser traduzido por um monitor, em geral um estudante de artes, contratado e preparado pela Bienal para familiarizar o público com a arte contemporânea.

Caberá a esse mediador falar sobre os 136 artistas de 56 países participantes e suas instalações, videoinstalações, pinturas ou esculturas, sem contar o próprio tema do evento, "Território Livre", e tudo o que puder ser dito e perguntado sobre a obra do homenageado, o pintor brasileiro Candido Portinari.

Parece muito e nem é tudo. Como explicar uma pintura contemporânea que faça a releitura de uma obra de Leonardo da Vinci, por exemplo, sem ter domínio sobre a arte renascentista?

É grande mesmo a responsabilidade de um monitor. "Ele é a ponte entre o público e o trinômio obra-curadoria-Bienal", costumava ouvir de Sheila Leirner, curadora das bienais número 18 e 19, Tadeu Chiarelli, à época integrante do setor de monitoria das duas exposições e, hoje, professor de história da arte no Brasil do Departamento de Artes Plásticas da USP (Universidade de São Paulo).

"Nossos monitores tinham sete meses de preparação, com curso de história da arte a partir do pós-guerra, em duas horas de aulas três vezes por semana", conta Chiarelli. Tendo como princípio que o monitor dispõe apenas de um instrumental, e não de todo o conhecimento necessário, a preparação era reforçada ao longo da Bienal.

"A cada visita, o monitor preenchia um relatório e, uma vez por semana, as questões levantadas eram socializadas e discutidas." A partir das dúvidas despertadas pelo próprio freqüentador, o que não dava certo no diálogo entre a teoria e o contato com o público era resolvido em grupo, na prática.

Exatamente assim é que deveria ser, acredita Denise Grinspum, que, antes de se tornar diretora do museu Lasar Segall, em 2002, foi a responsável pela implantação de sua área educativa, em 1985, após estrear como monitora da Pinacoteca do Estado, em 1981.

Denise, que refletiu sobre o papel da escola na formação do público de artes plásticas em sua tese, "Educação para o Patrimônio: Museu de Arte e Escola - Responsabilidade Compartilhada na Formação de Públicos", apresentada na Faculdade de Educação da USP, defende a formação sólida de monitores. "Arte contemporânea é de difícil fruição, as pessoas vão porque há um bombardeio da mídia", observa Denise. "O que não pode acontecer é a pessoa ir a uma exposição e se sentir alijada do processo, não entender nada."

Passo rápido

Roteiro de 150 minutos com obras fundamentais da Bienal

Térreo
- "Gimme Gummi", instalação de Leo Schatz (Áustria)
- "Le 11 Juin 2002 Cauchemar de George V", escultura de Huang Yong Ping (China)
- Título desconhecido, escultura de Simon Starling (Inglaterra)
- "Vital Brasil 2004", intervenção de Thiago Bortolozzo (Brasil)

1º andar
- Instalação sem título de Artur Barrio (Brasil)
- Escultura de Cai Guo Qiang (China)
- "Contención", instalação de Geysell Capetillo (Cuba)
- "Pulverous", vídeo de Aernout Mik (Holanda)

2º andar
- 4 pinturas de Beatriz Milhazes (Brasil)
- 4 pinturas de Inka Essenhigh (EUA)
- 4 pinturas de Walmor Corrêa (Brasil)
- "Invisible Cities", videoinstalação de Jonas Dahlberg (Suécia)
- "Seven Minutes Before", videoinstalação de Melik Ohanian (França)
- "Expedição Thomas Ender Reconsiderada", instalação de Mark Dion (EUA)
- "Where Does the Dust Collect Itself", instalação de Xu Bing (China)
- "Nasca/Peru", fotografias de Thomas Struth (Alemanha)
- 5 pinturas de Luc Tuymans (Bélgica)

No caso da Bienal, ainda há de se vencer todos os quilômetros da mostra. Pensando em facilitar esse percurso, a direção da 26ª Bienal organizou alguns roteiros (veja exemplo ao lado). Num prédio de 25 mil m2 de área, os roteiros servirão de bússola para que o viajante não se perca no cansaço da visitação e, ao mesmo tempo, desfrute as obras consideradas "fundamentais".

Mas roteiros, apenas, não bastam. Em nota à imprensa, o curador da Bienal, Alfons Hug, afirmou que a exposição requer "uma ampla ação educativa" que propicie "a toda uma geração de estudantes o convívio com a arte contemporânea".

Até a conclusão desta edição, na última semana de agosto, essa ação educativa ainda não estava totalmente definida. A orientação de professores da rede pública, que acompanharão seus próprios estudantes à Bienal, não passava de um esboço. O treinamento dos monitores teve sua primeira aula no dia 23 de agosto.

É pouco mais de um mês para compreender o que faz com que bichos empalhados adquiram valor de esculturas para a arte contemporânea e contribuam para colocar seus autores, como Huang Yong Ping, um dos mais respeitados artistas da China.

Marcos José de Moraes, coordenador do curso de educação artística da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado) e um dos responsáveis pela formação dos monitores, defendia 450 como "mínimo de monitores necessário" para dar conta de uma Bienal com o porte da 26ª. Por enquanto, trabalha-se com o número de 300.

Com entrada franca, a exposição deve atrair 1 milhão de pessoas, segundo cálculos da organização. A edição anterior (2002) foi vista por 670 mil pessoas e teve 95 monitores. Em 2000, mais de 380 mil visitantes foram auxiliados por 157 monitores.

Neste ano, cerca de metade dos monitores são alunos da Faap, parceira da Bienal na formação da monitoria. Eles receberão R$ 2.400 pelos três meses de trabalho em turnos diários de quatro horas -ou seis horas aos fins de semana. A outra metade receberá R$ 15 por dia, para cumprir a mesma jornada que os primeiros. Todos ganharão o certificado que tem valor como estágio.

Divulgação
""Le 11 Juin 2002 Cauchemar de George V", escultura de Huang Yong Ping (China)
O monitor que passar pelo processo de preparação terá acompanhado 30 horas de aula sobre o desenvolvimento da arte contemporânea dos últimos 40 anos do século 20. Também terá participado de discussões com os curadores das 56 representações nacionais. Até aí, serão 15 encontros de duas horas de duração, em média. "Esse processo não vai formar um conhecimento consolidado, mas deve provocar uma abertura para a entrada de mais conhecimento", aposta Marcos Moraes.

A formação do monitor da 26ª Bienal ainda deve comportar 30 horas de encontros com 10 ou 15 artistas que tenham chegado ao país para dar início à montagem de suas obras, nos dias que antecederem o início da exposição.

Somados à vivência cultural própria de estudantes, na maioria egressos de cursos de artes ou arquitetura, esses momentos de educação devem enriquecer o conhecimento sobre arte contemporânea dos monitores —e ajudá-los a colocar em prática o que assimilaram na teoria.

É o caso da escultura de Huang Yong Ping, do tigre em posição de ataque ao elefante. Para criá-la, o artista se inspirou no temor do rei da Inglaterra George 5º (1865-1936) de ser morto por um felino durante uma de suas habituais caçadas na Índia. Para apreender que a parte do temor que mais mobilizou Huang Yong Ping foi o pesadelo do rei será preciso enxergar mais do que dois animais empalhados e dispostos no térreo do prédio da Bienal.

     

Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).