Folha Online sinapse  
31/08/2004 - 03h36

Palavras para quem não ouve

Rodrigo Gerhardt
free-lance para a Folha de S.Paulo

Durante uma aula de psicologia da educação na PUC-SP, seis alunos surdos sabem quando o telefone celular de um colega toca, se a professora pede silêncio ou se fora da sala todos gritam comemorando um gol. Isso é possível graças ao intérprete de Libras (Língua de Sinais Brasileira) que está na sala de aula.

Marcelo Soares/Folha Imagem
O intérprete Ricardo Sander (à esq.), que auxilia aluno da Unicid (de costas)

Diferentemente de cegos e pessoas com deficiências motoras, que necessitam de adaptações no material didático e no acesso físico às aulas _mudanças na infra-estrutura_, com os surdos a acessibilidade está relacionada à comunicação verbal. "Imagine-se sendo obrigado a estudar numa classe em que todos falam russo. Você ainda terá a vantagem de ouvir", compara Ricardo Sander, 44, intérprete há 24 anos.

Com um profissional como Sander em sala de aula, os surdos têm uma participação semelhante às dos outros estudantes: podem apresentar seminários, participar de debates e reuniões em grupo com outros colegas e não perdem o que acontece ao redor. "Só fui saber o que é uma aula de verdade depois que tive acesso a um intérprete", diz Mirtes Hayakawa, 36, recém-formada em pedagogia pela PUC-SP.

Mirtes diz que, até o terceiro ano do curso, não conseguia acompanhar e participar das discussões teóricas. "Descobri que outros surdos tinham o costume de gravar as aulas, para que os pais traduzissem em casa. Como meus pais também são surdos, eu não podia fazer o mesmo", explica. A solução só veio quando ela conheceu o trabalho dos intérpretes de língua de sinais durante um congresso. Em 1999, ela contratou um profissional para que a acompanhasse. Dois anos depois, ele passou a ser pago pela própria universidade.

A presença de um intérprete nas instituições de ensino superior é garantida por leis específicas, que prevêem a contratação de um desses profissionais sempre que o aluno manifestar a necessidade. A portaria 3.284 do Ministério da Educação, editada no ano passado, reforça a acessibilidade como condição para o credenciamento de instituições e para a autorização de novos cursos pelo MEC. "O aluno que não for atendido deve procurar o Ministério Público Federal", orienta a procuradora da República Adriana da Silva Fernandes.

Até quem tem uma boa leitura labial se sente mais seguro com a presença de um intérprete. "Ler lábios é muito cansativo. Saía da aula exausta e não conseguia acompanhar tudo. Bastava o professor se virar ou andar pela sala para eu perder o que estava sendo dito", explica ao Sinapse, por meio de um intérprete, Laís Sayuri Yasunaka, 21, estudante de comunicação social das Firb (Faculdades Integradas Rio Branco).

O segundo desafio é adaptar esse novo profissional à sala de aula, até mesmo aos professores. "Alguns professores queriam que olhássemos para ele, e não para o intérprete, quando respondiam às nossas perguntas", diz Cezar Pedrosa de Oliveira, 23, aluno da PUC-SP. Nas primeiras aulas, Paulo Roberto de Camargo, 48, professor de psicologia social das Firb, olhava desconfiado para os intérpretes, pois temia que sua fala pudesse ser deturpada. "A presença do intérprete e a 'fala' dos alunos me ajudaram a superar o preconceito de oferecer proteção diferenciada, por achá-los mais limitados que os outros, o que não é verdade", diz.

Para esclarecer a função do intérprete e promover um bom relacionamento com os professores, as instituições têm adotado medidas diversas. O novo "código de conduta" das Firb pede: que o intérprete se sente ao lado do professor, e este não deve falar de costas enquanto escreve no quadro; que as carteiras sejam dispostas em semicírculo; e, para incentivar o relacionamento com os outros alunos, que o intérprete não deve acompanhar o surdo durante o intervalo.

Na Faculdade Radial, também em São Paulo, os intérpretes têm acesso a provas e outros materiais didáticos com antecedência, para que possam traduzi-los para os surdos no momento adequado.

"É a universidade que deve se incluir no projeto, e não os alunos na instituição", diz Ottmar Teske, diretor do Ipesa, instituto da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil) encarregado de pesquisas e programas na área de educação de surdos e acessibilidade. Essa instituição rio-grandense-do-sul foi a primeira do país a contratar intérpretes de língua de sinais em seu quadro de funcionários, em 1997. Hoje, conta com 13 profissionais, que atendem a 75 alunos surdos em 23 cursos.

Em Santa Catarina, os intérpretes auxiliam também professores surdos, como Gladis Perlin, 52, do curso de pedagogia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Para aulas teóricas e reuniões de professores, a universidade contratou dois intérpretes. "Graças a eles consigo interagir com os alunos perfeitamente, sem nenhuma dificuldade de comunicação", afirma ela, por e-mail.

A presença dos intérpretes também tem impulsionado a integração entre os alunos fora da sala de aula. "No início, era muito curioso, mas nos acostumamos e até aprendemos alguns sinais", diz a estudante Letícia Kauffman, 22, aluna de pedagogia da PUC-SP. Na Faculdade Radial, que possui 13 intérpretes contratados para atender aos 20 alunos surdos, essa aproximação se confirma, segundo a coordenadora pedagógica Ana Lídia Thalhammer. "Em razão do interesse dos alunos ouvintes, passamos a oferecer um curso básico de Libras meia hora antes de as aulas começarem", diz.

Para se tornar voz para os surdos, não basta boa fluência em Libras. O intérprete de sinais precisa entender o contexto e o vocabulário da mensagem. "Como não há escrita em Libras, muitos termos técnicos só começam a ter sinais correspondentes agora, criados na sala de aula, por exemplo, com o acesso dos surdos ao ensino superior. O intérprete com nível acadêmico é fundamental", diz Leland McCleary, professor de lingüística da USP.

O principal entrave é a falta formação reconhecida pelo MEC _não há nenhum curso superior no país. Segundo Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos, a maioria dos profissionais aprendeu Libras em igrejas ou associações.

Formado em teologia e pedagogia, Ricardo Sander tem o desafio de traduzir aulas de engenharia de telecomunicações para um aluno da Unicid (Universidade Cidade de São Paulo). "Eu também preciso estudar muito e conversar com os professores. Quando o aluno consegue entender o conceito de um termo técnico, como vetor, ele cria naturalmente um sinal para representá-lo", explica o intérprete, que tem o objetivo de, no futuro, elaborar manuais que padronizem esses sinais.

     

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