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28/09/2004 - 02h56

Prazeres da mesa e do aprendizado

Fernando Eichenberg
free-lance para a Folha de S.Paulo, de Paris

Biologia comparativa dos alimentos e antropologia do sabor, história e geografia da cozinha e da gastronomia, psicologia do saber e do consumo. Esses curiosos temas fazem parte do menu do recém-criado Instituto de Altos Estudos do Sabor, da Gastronomia e das Artes da Mesa (Iheggat, na sigla em francês), cujos professores foram requisitados em restaurantes de luxo e institutos de pesquisa —prova de que ciência e gastronomia definitivamente deram as mãos, e comer deixou de ser apenas prazer para se tornar objeto de estudo.

Divulgação
Vista aérea do campus da Universidade de Ciências Gastronômicas, em Pollenzo (Itália)

Como o Iheggat, instituições de pesquisa e de ensino têm surgido com freqüência na Europa e comprovam que o interesse pelo tema está renovado. O IEHA (Instituto Europeu de História da Alimentação), o primeiro dessa onda recente, surgiu em 2001 para estimular e promover a troca de experiências entre historiadores, sociólogos, geógrafos e outros pesquisadores. Em maio deste ano, o movimento Slow Food, defensor da valorização das tradições culinárias, montou na Itália a Universidade das Ciências Gastronômicas (USG, na sigla em italiano).

As novas instituições têm impulsionado também o aumento da produção acadêmica e da bibliografia disponível na área. Segundo os dados do IEHA, cerca de mil documentos relacionados à história da gastronomia são catalogados a cada ano só na França.

Para o historiador Christophe Marion, do IEHA, a expansão da área de estudos gastronômicos está ligada à questão da saúde. Para ele, as recentes e sucessivas crises de contaminação alimentar, como a da vaca louca, despertaram no cidadão europeu interesse maior e curiosidade científica pelo conteúdo do prato de todo dia.

Já o presidente da instituição, Maurice Sartre, acredita que, além de perguntar sobre o que comemos, deve-se igualmente questionar como comemos, com quem, onde e em que ocasião. "Em torno do alimento, organiza-se a vida social, política e religiosa, códigos que o historiador, o sociólogo, o etnólogo e o antropólogo devem saber identificar, decodificar e compreender", resume.

Christophe Marion acrescenta ainda outro viés do aprendizado gastronômico: "A história da alimentação leva a uma melhor compreensão das sociedades antigas e esclarece problemas contemporâneos, como a obesidade. Antes de alterar nossos regimes alimentares, é necessário compreendê-los", observa.

O IEHA, sediado na cidade francesa de Tours, promove cursos e palestras abertos ao público em geral, como seminários mensais na Sorbonne, sobre temas relacionados à alimentação. Em setembro, lançará "História e Cultura da Alimentação", o primeiro mestrado do instituto, elaborado por professores das universidades de Tours, de Bolonha (Itália), de Zaragoza e de Barcelona (Espanha). O objetivo é obter financiamento suficiente para viabilizar a gratuidade do curso.

O IEHA está construindo a primeira biblioteca dedicada à história e às culturas da alimentação, com obras que cobrem o período que vai da Pré-História à Segunda Guerra Mundial. O local abrigará ainda o Centro de Memórias da Cozinha Contemporânea, que reunirá notas, arquivos, manuscritos, relatórios e patrimônios de historiadores, gourmands, chefs, colecionadores e pesquisadores da gastronomia.

Na Itália, a USG se inspirou na convicção de que a gastronomia é não só uma arte mas também uma ciência. Dividida em duas sedes, em Colorno (na Província de Parma) e em Pollenzo (Cumes), a universidade acolherá a partir do início do ano letivo, em outubro, cerca de 60 alunos de diferentes nacionalidades. As aulas serão ministradas em italiano e em inglês por um corpo de 130 professores internacionais, entre italianos, franceses, americanos, australianos e japoneses.

Após três anos de formação de base e dois de especialização, além estágios obrigatórios, os alunos receberão o diploma de bacharel em ciência da comunicação alimentar e da gastronomia ou em gestão da produção e da distribuição alimentares. O custo dos estudos na USG é de 19 mil euros (R$ 67 mil) por ano, incluindo acomodação e almoços. "A universidade não ensinará a cozinhar, mas formará gestores de empresas agroalimentares, diretores comerciais, críticos gastronômicos e editores", diz Vittorio Manganelli, diretor da USG.

Já o Iheggat foi concebido para fornecer uma formação superior sobre diferentes aspectos da gastronomia. Foi alcunhado de "Harvard da gastronomia" pelo pai da idéia, o então secretário de Estado francês de Pequenas e Médias Empresas e do Artesanato, Renaud Dutreuil, numa referência à renomada universidade norte-americana.

O que diferencia o Iheggat dos demais cursos de formação e especialização gastronômica? "Todas as profissões da gastronomia possuem suas próprias escolas de primeira grandeza, seja em hotelaria, cozinha, nutrição, vinhos ou administração. Mas não há um programa que reúna todos esses aspectos do sabor e da gastronomia", diz ao Sinapse Rémi Krug, presidente do instituto, instalado nas dependências da Universidade de Reims. Os programas do Iheggat serão divididos em dois módulos de apenas duas semanas cada um, com aulas dadas por nomes como Alain Ducasse, Pierre Gagnaire e Michel Bras. O primeiro curso começará em 14 de novembro.

No primeiro ano, entre 30 e 35 alunos deverão ser selecionados para cursar o programa. Os candidatos deverão ter no currículo uma experiência mínima de sete anos nas áreas de gastronomia ou alimentação, além de dominar francês e inglês, os idiomas oficiais do curso. A prioridade será dada a profissionais em atividade, mas não estarão excluídos gourmands apaixonados. Pelas quatro semanas de aprendizado gastronômico, o aluno terá de desembolsar 4.000 euros (R$ 14 mil).

Rémi Krug, também dirigente do grupo de champanhe Krug, define-se como um amante de viagens, da cozinha e da "art de vivre". "As pessoas têm fome e sede de coisas belas, de apreciar e conhecer. O consumidor quer se dar prazer. Não quer mais o meio termo", resume.

Há cardápios para diferentes gostos e bolsos no aprendizado da gastronomia. Se a tendência persistir, novas receitas deverão incrementar ainda mais as ofertas de pesquisa e ensino alimentares. Bon apetit!

Saiba mais:
  • Instituto Europeu de História da Alimentação:
    www.ieha.asso.fr
  • Universidade das Ciências Gastronômicas:
    www.unisg.it
  • Instituto de Altos Estudos do Sabor, da Gastronomia e das Artes da Mesa:
    www.iheggat.com

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