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30/11/2004 - 03h22

Em busca da diversão perdida

Daniela Chiaretti
free-lance para a Folha de S.Paulo

Nos últimos minutos da expedição, um índio manchineri risca um tabuleiro no quadro negro da aldeia Extrema, no Acre, e finalmente entrega o jogo. O retângulo cortado por linhas diagonais e com um triângulo de apêndice é o traçado do jogo da onça, o ponto alto da busca de uma equipe que vasculha, há mais de um ano, um tema pouco explorado pela antropologia brasileira: o universo lúdico dos povos indígenas. A surpresa se explica. Os pesquisadores sabiam da existência desse jogo, mas não tinham provas de que índios brasileiros o praticavam.

A onça é o grande achado de um trabalho inédito que já rendeu registro de mais de 40 jogos e brincadeiras, 30 horas de gravações em vídeo, centenas de fotografias e a descoberta de muitas coincidências entre etnias daqui e culturas distantes. Os meninos manchineris constroem uma arma de pressão com bambu e munição de bolinhas de polpa de pequi praticamente idêntica à usada por índios norte-americanos no século 19. Os adolescentes ticunas da beira do Solimões brincam com um bilboquê de castanha parecido ao relatado no "Games of the North American Indians" (Jogos dos índios norte-americanos), do etnólogo Stewart Cullin, a maior referência sobre o tema, publicada inicialmente em 1907.

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O projeto Jogos Indígenas do Brasil visitou oito etnias: camaiurá (alto Xingu), bororo e pareci (Mato Grosso), canela (Maranhão), ticuna e maioruna (Amazonas), manchineri (Acre) e guarani (São Paulo). Veja alguns de seus jogos.

Onças e pumas
Os bororos, em Mato Grosso, chamam o jogo da onça de "adugo". O tabuleiro é riscado na areia, um jogador fica com a pedra que representa a onça, e o outro, com os 14 cachorros. A idéia é capturar as peças do adversário, com movimentos semelhantes aos do jogo de damas. Na simbologia inca, eram ovelhas contra puma; no Nepal, tigres e cabras; na Índia, leopardos e vacas; para os chineses, senhor feudal e camponeses.

Dado-pião
Os parecis, da aldeia Formoso, em Mato Grosso, jogam a sorte com dados. O cubo de madeira é espetado em um palito e tem um "x" em uma das faces. Apostavam arcos, flechas e enfeites, mas agora costumam trocar cigarros, canivetes e sabonetes.

Só para mulheres
O "tidimure" é uma espécie de boliche, com uma pista feita na areia, pinos de bambu e bola de marmelo. Só as mulheres parecis jogam.

Fim da linha
Os camaiurás, no Xingu, têm um jogo de estratégia que parte de um fio de buriti afiado, o "ui'ui". Um dos jogadores, em segredo, enterra o fio na areia —só ele sabe onde termina. Para despistar, coloca pedaços em outros lugares. Enquanto ele movimenta o barbante para a frente e para trás, os jogadores têm que descobrir onde está a outra ponta.

Engenhoca globalizada
Os canelas, da aldeia Escalvado, no Maranhão, testam a paciência com um desafio que o mundo conhece por "anel africano". A idéia é simples, e a solução é um racha-cuca. A versão indígena do quebra-cabeças é uma corda de buriti presa a uma vareta e a dois anéis de madeira que têm que ficar juntos.

Hits das aldeias
Cama-de-gato é prática comum, o que muda são os símbolos representados. Os ticunas, no Solimões, desenham ninhos de pombo e couro de anta no fio de buriti; os camaiurás, no alto Xingu, formam morcegos e cobras; os canelas, no Maranhão, fazem com sapos. Petecas de palha de milho e penas de emas, piões feitos com sementes e pernas-de-pau são vistos em quase todas as aldeias. Eram brinquedos também dos índios dos EUA.

Onde encontrar:
Origem Jogos e Objetos
Tel. 0/xx/11/3079-2794
www.origem.com.br

As coincidências se repetem no jogo da onça. Um jogo de estratégia muito parecido, o do puma, divertiu os incas peruanos. Escavações arqueológicas descobriram em muros pré-colombianos, perto de Cuzco, um tabuleiro como o que é riscado no chão daqui. Na versão nacional, jogada com pedrinhas ou sementes, bororos de Mato Grosso, manchineris do Acre e guaranis de São Paulo tentam encurralar uma onça com 14 cachorros que lutam para não serem liquidados pelo predador.

A perseguição ao jogo da onça vem a reboque dos estudos do empresário Maurício de Araújo Lima, um dos sócios da Origem, loja de São Paulo que resgata e reproduz jogos de civilizações do presente e do passado e que assina a realização da expedição pelas aldeias de oito etnias no Brasil. Tudo começou por brincadeira, há 15 anos, quando Lima e as irmãs Mônica e Patrícia Sabino abandonaram escritórios para fazer caleidoscópios. Depois saíram à procura de jogos fenícios, vikings, tibetanos. Durante uma visita ao Museu Britânico, em Londres, conheceram o professor Irving Finkel, especialista em Oriente Médio e membro da International Society for Board Games Studies, que reúne gente interessada em jogos. "Ele nos disse que não havia praticamente nada sobre índios brasileiros e nos sugeriu a pesquisa", diz Lima.

À sugestão se juntou a informação de que, no sul de Minas Gerais, havia um jogo de estratégia antigo, com pedrinhas, similar a um indiano. O assunto veio à tona na sociedade internacional de jogos. Dali para a diversão dos incas foi um pulo, e assim nasceu o projeto Jogos Indígenas do Brasil (www.jogosindigenasdobrasil.art.br), patrocinado pela Bosch e com recursos da Lei Rouanet.

Lima pretende continuar fuçando e agora planeja viagens à Bolívia e ao Peru. "Jogos tradicionais estão sob ameaça", diz Finkel, que considera essa operação o resgate de um "tipo de tesouro nacional".

Semelhanças e diferenças entre as culturas indígenas do continente, com foco na mitologia, foram objeto de estudo de um dos mais célebres antropólogos do mundo, Claude Lévi-Strauss. "Se ninguém duvida de que mitos e ritos sejam manifestações passíveis de estudos antropológicos, cabe a mesma postura diante dos jogos", diz o antropólogo Fernando Vianna, do PDPI (Projetos Demonstrativos de Povos Indígenas), ligado ao Ministério do Meio Ambiente. "Penso que vale a pena traçar pontes", incentiva.

As pontes, no caso, exigem pesquisas mais profundas. Mas é curioso imaginar que povos no Nepal, nos Estados Unidos e no Brasil pudessem buscar diversão de formas muito semelhantes. "Brincar nos faz sair da realidade, como fazem a dança e a arte, nos leva a outro patamar, nos distancia da realidade. É um estado de espírito", diz a socióloga Maria Cecília Aflalo. Segundo ela, o que leva qualquer sociedade a brincar é atemporal e da natureza humana. "O que motiva a jogar damas, resta um ou velha é a sedução da estratégia, o desafio, a integração. Na minha opinião, é por isso que esses jogos perduram", diz.

     

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