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13/07/2003 - 08h36

Reforma da Luz esquenta discussão sobre patrimônio arquitetônico

SÉRGIO DURAN
da Revista da Folha

É daquelas discussões das quais se pode dizer que o resultado está produzindo mais calor do que luz, renegando, aliás, o próprio nome do local em questão. A reforma do prédio da estação central de trens paulistana, um edifício inglês do século 19, virou uma rede de intrigas, uma longa novela espichada por diferentes concepções arquitetônicas, interesses políticos e vaidades pessoais.

Lançado há dois anos, para ser entregue nos 450 anos da cidade, em 25 de janeiro próximo, o projeto de reforma do prédio está entalado na sopa de siglas de três órgãos de defesa do patrimônio: o municipal, Compresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), o estadual, Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo) e o federal, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

A pouco mais de seis meses do aniversário, já se sabe que até lá só estará pronta a fachada, cujo restauro, assinado pela arquiteta Helena Saia, 52, prevê apenas um pergolado metálico. A reforma completa também inclui a gare (espaço onde ficam as plataformas de embarque e desembarque dos trens de subúrbio), que será interligada, pelo subsolo, ao metrô, e --o xis da polêmica-- o interior do edifício.

Na parte interna, a proposta do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, 74, prevê a transformação do prédio em um centro cultural. No primeiro andar, ficarão administração, salas e pequenos auditórios, cujo uso será franqueado a professores da rede pública municipal e eventos. Está previsto também um escritório da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Na concepção original do arquiteto, o segundo andar está reservado para a Estação Luz da Nossa Língua, um túnel futurista de 120 metros de extensão que liga as duas extremidades do prédio e ao qual se chega por dois elevadores confinados em uma estrutura de vidro. O objetivo é expor ali réplicas dos primeiros escritos em português, documentos, cartas, peças de tecidos, inscrições rupestres e até a carta de Pero Vaz de Caminha. No mezanino suspenso sob o salão central, ficaria um bar.

O problema é que para transformar um edifício administrativo cheio de pequenas salas em um local de exposições e convívio público, o projeto de Paulo Mendes previa a eliminação de inúmeras paredes e, com elas, entalhes de madeira, portas antigas, assoalhos decorados, tudo o que mostra como era um escritório de estilo inglês do século 19.

Resultado: mesmo com orçamento de R$ 30 milhões e financiamento, patrocinada pela lei de incentivo fiscal, de empresas como TV Globo, Correios, IBM do Brasil, Vivo e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a reforma empacou. "Nunca achei que seria fácil a aprovação. Só não esperava que a discussão tomasse a dimensão que tomou, se transformando em uma situação 'kafkiana'", diz a arquiteta Silvia Finguerut, 45, responsável pelo projeto na Fundação Roberto Marinho.

Silvia diz que perdeu a conta de quantas vezes teve de viajar do Rio a São Paulo para explicar detalhes da proposta. "Em outras cidades, quando o prédio é tombado triplamente, em geral, dois órgãos delegam a um único a análise do projeto", conta. Como isso não aconteceu, os três órgãos exigiam, ao mesmo tempo, uma série de papéis, documentos, pesquisas, explicações. Além de mudanças pontuais: um exige a manutenção das escadaria do saguão, outro que o estuque da sala do primeiro andar seja refeito etc.

A situação durou um ano e meio, período em que sobraram discussões técnicas, acusações de desrespeito ao patrimônio e pareceres contraditórios entre os três órgãos, até porque o tombamento que cada um conferiu à construção tem natureza distinta. O Condephaat e o Compresp tombaram o prédio. O Iphan, o entorno da estação, incluindo até o traçado das ruas.

Recentemente, as três instâncias resolveram se unir e reprovaram integralmente o projeto. Em comum, os técnicos rejeitaram a interferência na ala oeste, única parte preservada após o incêndio que destruiu parcialmente o prédio, em 1946. Das portas ao estuque do teto, tudo está igual como há cem anos. Fora esse ponto, há vários outros contestados, inclusive a idéia do centro cultural.

"É um projeto elitista e vazio, um desperdício de dinheiro", acredita o arquiteto José Saia, 54, do Iphan. Ele acha que dificilmente o grande público buscará exposições sobre o idioma e sugere que o prédio abrigue a discoteca municipal, hoje confinada no Centro Cultural São Paulo, que se responsabilizaria pela música ambiente das estações. Ou vire sede da CPTM (Companhia Paulista de Trens Municipais), que ocupa um prédio alugado na região da avenida Paulista.

Irmão de Helena, a arquiteta da fachada, Saia foi retirado da análise da reforma pelo órgão federal e atribui o afastamento à sua opinião contrária ao projeto. "A polêmica poderia ter sido evitada não fosse a Fundação Roberto Marinho tentar enfiar o projeto goela abaixo dos técnicos", afirma.

Silvia Finguerut refuta, afirmando que a fundação não tentou impor nada e que a primeira versão foi somente um apanhado de idéias. "Por isso, fiquei surpresa com a reação. No restauro do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, tivemos mais de 20 versões de projeto, mas nada ganhou essa dimensão."

Haroldo Gallo, 50, que assumiu o Iphan recentemente, diz que prefere não comentar as razões do afastamento de Saia, ocorrido antes da sua chegada ao instituto. "Eu acho (a polêmica) um processo natural. É um prédio emblemático para os paulistas e paulistanos. Mas para mim, seja por qual diretriz, o restauro será um ganho enorme", afirma.

A oposição ao projeto também colaborou para o afastamento de Leila Regina Diegoli, 43, do cargo de diretora do Compresp e do Departamento do Patrimônio Histórico. Toda a diretoria do DPH, composta de nove técnicos, pediu demissão em solidariedade a Diegoli. Procurada pela reportagem, nem Leila nem a Secretaria Municipal da Cultura quiseram comentar o assunto.

"Ocorre que a maioria dos arquitetos não tem formação para trabalhar com patrimônio. Até 1996, esse assunto não constava do currículo das faculdades. Eles apresentam um projeto lindo para a prefeita (Marta Suplicy), mas que está ilegal do ponto de vista da preservação. Daí, nós do DPH é que aparecemos como culpados porque rejeitamos uma ilegalidade", diz Cássia Magaldi, 52, uma das ex-diretoras do departamento.

Fundamentalistas

Para o presidente do Condephaat, José Roberto Melhem, 59, a Fundação Roberto Marinho desconhecia as particularidades dos técnicos municipais. "Alguns são mais conservadores, até um pouco fundamentalistas, no sentido de que não se pode mexer em nada do prédio tombado", diz.

O tiroteio entre técnicos se justifica também pelo responsável pelo projeto. Arquiteto premiado, Paulo Mendes da Rocha coleciona polêmicas ao longo da carreira, que inclui obras como a Pinacoteca do Estado e a marquise da praça Patriarca --esta também foi parar na Justiça. "Fazer arquitetura em bem tombado exige muita maturidade, porque você vai valorizar a obra do outro, e não fazer do antigo um coadjuvante", critica José Saia.

Os Saia encabeçam um grupo que se opõe à política do Estado de restauro de prédios históricos. "No edifício do antigo Dops (vizinho à estação), as celas receberam massa corrida e teto de gesso. Isso é tratar o documento histórico como um bibelô", diz. A Luz, segundo ele, estaria recebendo o mesmo tratamento.

"Acontece que a história anda", rebate Mendes da Rocha. "Então, para restaurar um teatro romano, teremos de colocar cristãos e leões na arena?", questiona o arquiteto, integrante de uma geração que faz restrições à qualidade de algumas construções tombadas.

"Paulo Mendes se alinha com a 'velha guarda', formada por arquitetos modernistas que lutaram contra o estilo eclético e acadêmico, predominante no fim do século 19 e início do 20", explica Nestor Goulart Reis Filho, 72, professor de história da urbanização da Universidade de São Paulo. Para esse grupo, nem todo edifício antigo merece ser preservado como é. "A estação não é um projeto brilhante da arquitetura, é um edifício de grande porte feito com esmero", afirma.

Já os arquitetos mais novos seguem a Carta de Veneza, um conjunto de normas para restauração de patrimônio de 1969, elaborado por várias entidades internacionais abrigadas sob o guarda-chuva da Unesco. O princípio é de que tudo dentro de um prédio representa o documento de uma época e não deve ser mudado: piso, pintura das paredes, caixilhos, batentes. Mesmo que documentem mais a arquitetura do lugar de onde vieram do que o país em que estão inseridos. E a Luz, do projeto inglês ao material de construção importado, é totalmente européia.

A "Inglesa"

Projetada em 1895 e inaugurada em 1901, a estação foi uma espécie de dote do novo casamento entre a São Paulo Railway (SPR) e o governo brasileiro, que, logo após a proclamação da República, havia anulado todos os contratos de concessão firmados no Império. "Foi um presente para encher os olhos dos índios", conta o professor da USP.

Desenhada pelo arquiteto inglês Charles Henry Driver e executada pelo engenheiro William Speers, a estação é réplica idêntica de outra localizada em Sydney, Austrália. Com exceção dos tijolos, sobre os quais há controvérsia, o resto veio de fora, dos desenhos, londrinos, à madeira (pinho-de-riga) da Irlanda, às telhas de Marselha (França), à estrutura de Glasgow, Escócia.

Mas não se pode negar sua importância na história do desenvolvimento paulista. "Com a inauguração da SPR e o comprometimento da expansão de suas rivais Campinas e Santos pela febre amarela, o crescimento da cidade recebeu impulso decisivo", escreveram Luiz Ackel e Candido Malta Campos em "A Cidade que Não Pode Parar", que analisa todos os planos urbanísticos paulistanos do século 20 (ed. Mackpesquisa).

Esse crescimento ocorreu basicamente por causa dos imigrantes, que entravam no país pelo porto de Santos e chegavam à capital paulista pela "Inglesa", como a estação era chamada. "São Paulo era uma cidade colonial de construções de barro. Tudo foi destruído e reconstruído, de acordo com a composição da população", conta o professor da USP. Natural, portanto, que a maioria das construções copie estilos europeus. "Não é a estação da Luz que é importada. Nós é que somos", afirma Nestor.

É o medo de que a reforma apague detalhes importantes dessa história que movimenta as denúncias no Ministério Público, segundo a promotora do Estado Patrícia Moraes Ande, 36, que, ao lado de Rosane Simas (federal) acompanha a novela da reforma da Luz. "A polêmica é um bom sinal de que os paulistanos estão criando raízes e começando a amar o seu patrimônio", acredita a promotora, neta de ferroviário.

A promotoria, diz ela, não irá se sobrepor aos conselhos, "que vêm agindo de maneira muito profissional", só defenderá a legislação, "que nem sempre é lembrada nesses debates". Patrícia Ande cuida também do procedimento jurídico que contesta a construção do anfiteatro do parque Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer. "São situações distintas. A intervenção na Luz será benéfica. No Ibirapuera, a demanda da população é que o parque fique como está", diz.

Nova tentativa

Embora o atraso da reforma já esteja consumado, José Roberto Melhem, presidente do Condephaat, acredita que a polêmica terá final feliz. Há duas semanas, Mendes da Rocha e a Fundação Roberto Marinho entregaram um novo projeto. "A nova versão foi bem recebida pelos técnicos", diz. Mas a paz não está segura. "Ainda não temos uma posição. A gente espera que as solicitações tenham sido plenamente atendidas", afirma o arquiteto Fernando José Martinelli, 48, do Compresp.

Silvia Finguerut também considera que a discussão aperfeiçoou o projeto. "A nova versão acatou as recomendações dos órgãos, ganhou qualidade e acertou o grau de sintonia", diz a arquiteta da Fundação Roberto Marinho, que ainda assim não alimenta esperanças em relação à rapidez na aprovação.

Do futuro da Estação da Luz, que fervilhou de imigrantes no início do século passado, sabe-se que a integração com o metrô aumentará 7,5 vezes o tráfego de passageiros, que passará de 40 mil para 300 mil por dia, fazendo reviver os velhos tempos. Só que no lugar dos esperançosos imigrantes, estará a população da periferia da cidade.
 

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