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Historiadores
revêm a tese de que o país de Solano López teria
sido uma Cuba do século 19 derrotada pela aliança
militar do Brasil com a Argentina e o Uruguai
Novas
lições do Paraguai
RICARDO
BONALUME NETO
enviado especial ao Paraguai
Em
um livro apropriadamente chamado "As Lições da
História", o historiador inglês Michael Howard
escreveu algo que se aplica perfeitamente à produção
historiográfica sobre o maior conflito latino-americano de
todos os tempos, a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870),
mais conhecida como Guerra do Paraguai no Brasil, e como Guerra
Grande no Paraguai.
Howard, que teve a rara honra de deter a cátedra régia
de história moderna da Universidade Oxford de 1980 a 1989,
se referia a dois livros de ensaios seus, um escrito em 1971 e outro
em 1983, sobre o tema da guerra e da paz. "Relendo-os agora
(1991) percebi o quão impossível é para os
historiadores se afastarem de seu ambiente. Nossa agenda é
ditada por controvérsias correntes, queiramos isso ou não."
Para Howard, historiadores estão sujeitos como qualquer um
a "formular conclusões com base em temperamento, preconceito
e hábito, e então coletar a evidência para justificá-las".
A historiografia da Guerra do Paraguai refletiu como nenhuma as
preocupações de historiadores -e dos políticos
e militares- dos quatro países envolvidos desde o momento
em que foi dado o último tiro ou golpe de lança.
Só agora, na era do Mercosul, em que Paraguai, Argentina,
Brasil e Uruguai finalmente deixaram de se ver como potenciais beligerantes,
o tema está começando a ser oxigenado pelo trabalho
de alguns -infelizmente, ainda poucos- pesquisadores sérios
e dispostos a pôr de lado, na medida do possível, seus
"temperamentos, preconceitos e hábitos".
No livro "História do Brasil", de 1994, Boris Fausto
cita dois nomes -Francisco Doratioto, autor de "O Conflito
com o Paraguai - A Grande Guerra do Brasil" (Ática,
1996), e Ricardo Salles, autor de "Guerra do Paraguai - Escravidão
e Cidadania na Formação do Exército" (Paz
e Terra, 1990).
Existem outros, também nos outros países, nem sempre
historiadores nem sempre acadêmicos. Correndo o óbvio
risco de injustiça por possíveis omissões,
a lista incluiria, por exemplo, o antropólogo André
Amaral de Toral, Wilma Peres Costa, autora de um doutorado em sociologia
publicado como "A Espada de Dâmocles - O Exército,
a Guerra do Paraguai e a Crise do Império" (Hucitec/Unicamp,
1996); Mauro César Silveira, autor de "A Batalha de
Papel - A Guerra do Paraguai Através da Caricatura"
(L&PM, 1996).
"Não se trata da última palavra no campo da História,
mas de uma versão menos ideológica, mais coerente
e bem apoiada em documentos", escreveu Fausto sobre Doratioto
e Salles.
A nova historiografia está em contraste marcado com os dois
modelos básicos que a precederam -a tradicional, patrioteira
e cultuadora dos "grandes heróis", e a dita "revisionista",
de inspiração marxista e fortemente influenciada pelas
"controvérsias correntes", como diria Howard, das
décadas de 60 e 70.
A figura central da guerra foi o líder paraguaio Solano López
(1826-1870), e o que os historiadores dizem dele é portanto
bem representativo das correntes de interpretação.
Foi López quem, temendo a quebra do equilíbrio político
regional, decidiu fazer um ultimato ao Brasil, que estava intervindo
na política interna uruguaia.
Solano foi um continuador das políticas de seus antecessores,
de desenvolvimento econômico e de independência frente
aos vizinhos, notadamente a Argentina, ao qual o país estivera
vinculado durante o período em que ambos integravam o Vice-reinado
do Rei da Prata espanhol. Essas políticas eram obra dos dois
ditadores anteriores, José Gaspar Rodríguez de Francia,
que governou o país de 1813 a 1840, e o pai de Solano, Carlos
Antonio López, que chefiou o país de 1844-1862. Mas
Solano foi o primeiro a querer fazer sua voz ser ouvida na região
e para tanto estava prestes a iniciar uma corrida armamentista.
Para a historiografia tradicional brasileira, ele era um monstro
sanguinário e megalomaníaco, disposto a criar um império
no Rio da Prata por força das armas, no que foi impedido
por grandes heróis como o general duque de Caxias, Luís
Alves de Lima e Silva (1803-1880), o general marquês de Herval,
Manuel Luís Osório (1808-1879), ou o almirante marquês
de Tamandaré, Joaquim Marques Lisboa (1897-1897).
Para os revisionistas de esquerda da década de 60, ele era
um líder quase socialista, tentando criar uma nação
independente do imperialismo da principal potência capitalista
da época, o Reino Unido -mais ou menos o que os EUA faziam
na América Latina na época em que os livros estavam
sendo escritos. O Paraguai seria
uma Cuba derrotada do século 19.
Entre os livros da corrente revisionista está o de dois italianos,
Manlio Cangogni e Ivan Boris, com o sugestivo título "O
Napoleão do Prata", publicado em 1970 na Itália
(e em 1975 no Brasil, como "Solano López, o Napoleão
do Prata").
Mas o autor mais marcante, em termos acadêmicos, foi o argentino
León Pomer, que veio ao Brasil em 1977, expulso da Universidade
de Buenos Aires pelo regime militar. Pomer foi professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, da Universidade
de Campinas e da Universidade Estadual Paulista.
Seu livro de 1968, "A Guerra do Paraguai - Grande Negócio"
(tradução brasileira em 1980), é um dos marcos
do revisionismo. Embora voltado principalmente para o papel da guerra
na Argentina, sua tese básica é de quem mais se aproveitou
dela foi
o imperialismo britânico.
"Minhas opiniões hoje estão mais matizadas",
disse Pomer à Folha. "Não digo que foi a Inglaterra
que desencadeou a guerra", declara, enfatizando a palavra "desencadeou".
A hipótese de ter sido o Reino Unido o "causador"
do conflito foi analisada em detalhe por Leslie Bethell, que dirige
o recém-criado Centro para Estudos Brasileiros em Oxford.
Ele fez uma palestra a respeito no Rio, publicada em "Guerra
do Paraguai - 130 Anos Depois" (vários autores, organização
de Maria Eduarda Castro Magalhães Marques, Relume-Dumará,
1995).
A idéia de uma guerra movida pelos interesses de Londres
não faz sentido para ele. "Há pouca, senão
nenhuma evidência empírica capaz de sustentá-la
-pelo menos de acordo com a análise mais recente e detalhada
das relações da Inglaterra com o Paraguai no século
19, com base em fontes oficiais britânicas", diz Bethell.
Mas não era isso que, dos anos 60 aos 80, muitos brasileiros,
argentinos, paraguaios e uruguaios queriam ouvir, pois em um momento
ou outro desse período eles estiveram governados por militares.
Criticar a conduta de heróis do Exército e da Marinha
era portanto atacar a instituição responsável
pelas ditaduras nestes países.
O caso do Paraguai era mais complicado. Curiosamente, os autores
"revisionistas" não são cultuados apenas
pela esquerda. No Paraguai, a opinião essencial dessa corrente
-de que a guerra foi basicamente uma conspiração do
capitalismo britânico para acabar com o autônomo e nacionalista
Paraguai- tornou-se dogma também entre a direita local, principalmente
depois que Solano López voltou a ser considerado herói
quase sem máculas.
Mesmo no Paraguai, onde o lopismo ainda é ideologia praticamente
hegemônica (nenhum chofer de táxi falaria mal dele),
há autores novos com visões mais críticas,
como Guido Rodriguez Alcalá ou Ricardo Caballero Aquino e
J. Natalicio González, os dois prefaciadores da última
edição (1987) das clássicas memórias
do oficial paraguaio Juan Crisóstomo Centurión.
O Brasil sofreu um rolo compressor ideológico nos últimos
anos do regime de 64, principalmente graças a dois best sellers
desse nacional-populismo revisionista, "As Veias Abertas da
América Latina", do uruguaio Eduardo Galeano, publicado
pela Paz e Terra em 1978, e "Genocídio Americano - A
Guerra do Paraguai", do brasileiro Julio José Chiavenatto
(Brasiliense, 1979).
Os dois livros apelam para a emotividade e para uma seletiva utilização
das fontes. "Até sua destruição, o Paraguai
se erguia como uma exceção na América Latina:
a única nação que o capital estrangeiro não
tinha deformado", escreveu Galeano, que começa a falar
da guerra descrevendo primeiro uma viagem de ônibus ao lado
de um camponês guarani que "articulou algumas palavras
tristes em castelhano: nós paraguaios somos pobres e poucos'±".
Para Chiavenatto, a ditadura de Francia era exercida "em favor
do povo", e o Paraguai era "o mais progressista país
da América do Sul".
Um bom exemplo da técnica desse autor pode ser vista na descrição
da polêmica batalha de Campo Grande ou Acosta-Ñu, para
qual López conseguiu reunir um maltrapilho exército
de velhos e crianças depois de desbaratadas suas forças
em embates anteriores.
Os brasileiros eram liderados pelo Conde d'Eu (1842-1922), genro
de d. Pedro 2º. A batalha entre os veteranos brasileiros bem
armados e os adolescentes paraguaios durou oito horas. Eram 20 mil
aliados e 4.500 paraguaios. Morreram 2.000 paraguaios e 1.300 foram
aprisionados; as perdas aliadas foram de apenas 45 mortos e 431
feridos. Foi parecido com o que os norte-americanos fizeram na Guerra
do Golfo. O heroísmo suicida dos adolescentes é cultuado
no Paraguai, que deu o nome da batalha a seu liceu militar.
Chiavenatto acusa o conde de ter deliberadamente assassinado os
adolescentes feridos paraguaios ao mandar incendiar o capim seco
do local e cita como fonte as memórias do Visconde de Taunay
(1843-1899), autor de "A Retirada da Laguna".
O especialista em história militar Reginaldo Bacchi não
entendia a menção. E foi fazer o que poucos leitores
fazem: foi à fonte. E Taunay diz o exato oposto: havia balas
que ainda explodiam no campo por causa do "incêndio da
macega ateado, no princípio da ação, pelos
paraguaios, para ocultarem o seu movimento tático".
Ainda mais curioso, percebe-se de Taunay que antes de ser um sanguinário
matador de crianças, o conde era uma pessoal sensível.
Como escreveu Doratioto em sua dissertação: "Depois
da batalha de Campo Grande, talvez impressionado com a morte, na
batalha, de tantos adolescentes que lutavam nas fileiras paraguaias,
o Conde d'Eu mudou de postura. Segundo o Visconde de Taunay, que
fez parte do Estado-Maior do comandante das forças imperiais,
o Conde deixou de ser ativo e tornou-se 'displicente e caprichoso,
falando de contínuo na necessidade de regressar ao Rio de
Janeiro', afirmando a cada instante: 'Não tenho mais nada
que fazer aqui!'".
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