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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
06/02/2005
Experiência com samba ensina o prazer de aprender

Com 1.500 alunos, a escola tinha um nome pomposo, Comandante Garcia Dávila, mas era chamada de "maloquinha". Quem entrasse ali veria logo que o apelido era auto-explicativo: vidros quebrados, paredes pichadas, portas com marcas de arrombamento, vasos sanitários entupidos, cadeiras quebradas, marcas de infiltração de água nas paredes. Os professores viviam apavorados com as gangues que traficavam drogas e os ameaçavam de retaliação se não ficassem calados. Os seguranças não se atreviam, muitas vezes, a apartar as brigas dos alunos, dos quais muitos portavam armas.

A "maloquinha", porém, foi salva pela pedagogia do samba. Sem saber que se tinham tornado educadores, carnavalescos, com seus passos e fantasias, produziram um extraordinário enredo de revitalização comunitária, ainda praticamente desconhecido.

O novo enredo da "maloquinha", no Parque Peruche, zona norte de São Paulo, começou em 1995, quando a escola passou a ser dirigida por um indivíduo que, antes de virar professor, detestava estudar. "Eu fazia o que podia para cabular as aulas", recorda-se Waldir Romero, cuja paixão eram os esportes, especialmente o futebol.

Os esportes levaram Waldir a se formar em educação física e, ao tornar-se professor, interessou-se por pedagogia e descobriu as razões de sua ojeriza adolescente às salas de aula. "Quase tudo o que ensinavam não fazia me fazia o menor sentido."

Então do lado oposto dos alunos que também detestavam estudar, Romero viu-se obrigado a ensinar a quem não queria aprender e, pior, cercado de violência e degradação. Encontrou a saída exatamente no seu passado de "mau" aluno: foi procurar o prazer das ruas. E encontrou o prazer bem ao seu lado.

Há uma peculiaridade histórica que ajudou Romero. Libertados da escravidão, os negros foram, aos poucos, sendo expulsos das zonas mais nobres da cidade de São Paulo. No rumo à periferia, muitos deles se fixaram onde é hoje o Parque Peruche, o que explica por que o bairro é povoado de tantas escolas de samba, freqüentadas pela maioria dos alunos da "maloquinha". "Se tínhamos alguma chance de salvação, ela não estava nas salas de aulas, estava nos barracões."

Convidou os blocos a usar o ginásio da sua escola. "Lentamente, foram perdendo a desconfiança. Tinham medo das manipulações políticas." Ao mesmo tempo, promoveu atividades para os alunos nos barracões. "Era como se formássemos um mesmo ambiente de aprendizado."

Para aprimorar essa integração cultural, Romero enriqueceu as atividades extraclasse com aulas de cavaquinho, violão, percussão e capoeira; os professores eram arregimentados nos barracões.

Várias escolas de samba da cidade, como a campeã Mocidade Alegre e a Gaviões da Fiel, preferida da torcida organizada do Corinthians, adotaram a quadra da "maloquinha" como espaço oficial de ensaios. Alguns jovens, mais violentos, logo perceberam que não seria muito prudente desrespeitar a "maloquinha" e arrumar uma briga, por exemplo, com a Fiel . A maioria nem precisou do argumento do medo: apenas se sentiu apropriando-se de um espaço. Festas de casamento, batizado e aniversário passaram a ser feitas na escola.

Mais difícil que levar o samba para o pátio era levá-lo para a sala de aula. Nisso está um dos pontos mais férteis dessa experiência. Professores sentiram-se provocados a deixar a rotina curricular de lado e tirar proveito do samba nas aulas de português, história, geografia e até ciências. Exemplo óbvio: aprender gramática por meio das letras de música.

Para desenvolverem o senso de empreendedorismo, os alunos foram convidados a organizar, com todos os requintes possíveis, um desfile. Teriam de fazer o enredo (o que os obrigava a estudar história), compor as músicas (ajudados pelos professores de português) e montar as fantasias e os carros alegóricos (uma chance de aprimorar as aulas de matemática).

Isso fez com que muitos jovens, profissionalizados, pudessem ver no Carnaval uma fonte de renda. Nesse momento, dirigentes comunitários imaginam-se até mesmo capazes de usar o potencial artístico local para gerar empregos: querem fazer uma espécie de bairro do samba, com casas de shows, bares e restaurantes e, assim, atrair pessoas de toda a cidade. "Esse é o nosso sonho", diz Romero.

Sonhos à parte, colhem-se resultados reais: diminuiu a repetência, a evasão caiu drasticamente, as instalações físicas estão preservadas, pararam os roubos e depredações. A violência quase desapareceu.
Apesar de ainda distantes do ideal, as notas dos alunos melhoraram. Mas uma coisa se conseguiu: quase ninguém mais chama a escola de "maloquinha".

PS - Não foi gasto dinheiro público a mais para fazer essa experiência. Volto a dizer: se quiserem melhorar a educação, comecem treinando os diretores para serem não burocratas, mas dirigentes comunitários. Conhecendo escolas públicas de várias partes do mundo, da Índia aos Estados Unidos, da África à América Latina, inclusive do Brasil, ainda não vi esse princípio fracassar. Só essa formação não basta, mas, sem isso, não se consegue quase nada.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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