HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 

folha de S.Paulo
06/06/2004
Se Maluf não acabou, São Paulo acabou

Depois da última saraivada de evidências de desvios de recursos, exibida na semana passada e somada à decisão da Justiça de quebra de sigilo bancário a partir de documentos enviados pela Suíça, não há meio-termo: se Paulo Maluf não acabou politicamente, a cidade de São Paulo acabou moralmente.

Qualquer indivíduo que analisasse com um mínimo de isenção a papelada já disponível, mesmo desconsiderando todos os testemunhos feitos ao Ministério Público, concluiria: uma eventual vitória de Paulo Maluf só poderia ocorrer em um ambiente de dissolução moral.

É certo que não há ainda condenação judicial -e também é certo que, formalmente, ele tem pleno direito de disputar as eleições. Portanto o ex-prefeito não pode ser considerado culpado. Mas o volume de indícios é tão gritante e os motivos de fundadas desconfianças tão óbvios que não existe espaço para uma candidatura.

O que está em crise não é um político, mas um estilo de governar, do qual os propalados desvios de recursos são apenas uma conseqüência -e é a isso que interessa prestar atenção nesta sucessão municipal.

A inegável e até mesmo surpreendente força de Paulo Maluf está ancorada na suposição, aceita por larga fatia do eleitorado paulistano, de que eventuais mazelas são o preço a pagar pela abundância de obras. Ele soube se apresentar, habilmente, como um fazedor de pontes, viadutos, passagens subterrâneas, quase confundindo o papel do engenheiro com o do prefeito.

Não importa tanto que o trânsito, graças à ênfase no automóvel, só tenha piorado. Vale que, nas ruas, se apreciem as obras.

Por muito tempo, esse ícone do administrador tocador de obras seduzirá eleitores, mas, pelo menos em uma cidade como São Paulo, tem seus dias contados -e não é por causa de denúncias de roubalheira.

Quaisquer obras que se façam para carros serão insuficientes diante do aumento constante da frota que circula pelas ruas. Fazer obras para facilitar o fluxo de automóveis dentro da cidade é, sem exagero, jogar dinheiro fora.

Sério mesmo seria os governos federal, estadual e municipal se unirem para ampliar a rede de metrô e abrir mais espaço para a circulação do transporte público. O resto é desperdício.

Daí que, mais cedo ou mais tarde, alguém com coragem política vai implantar, como em Londres, o pedágio urbano para evitar o colapso do trânsito em São Paulo e assegurar mais verbas para o transporte público.

O desperdício do trânsito é apenas a metáfora do esgotamento de um modelo administrativo. A questão é como gerir uma cidade internacional num mundo globalizado e movido a uma velocidade jamais vista de inovações. Mais: uma cidade que vai perdendo indústrias e vai se vocacionando aos serviços.

Talvez agora ainda seja um tanto difícil entender o que vou dizer, mas o principal papel do prefeito é antes o de ajudar a formar o capital humano que o de fazer obras. Ou seja, cabe a ele melhorar as condições para que os indivíduos aprendam melhor e produzam mais.

Isso significa, entre outras coisas, criar melhores escolas e mais facilidade de acesso a bens culturais e de lazer, além de elaborar um plano para simplificar a vida de quem quer trabalhar ou abrir um negócio. As dificuldades para abrir um negócio hoje, com tantas normas e impostos, são um gigantesco desestímulo ao espírito empreendedor.

A eficiência do prefeito estará na habilidade de gerir todos os recursos para ampliar a qualificação da comunidade. Isso exige mais que obras, exige uma sofisticada engenharia de gestão para que se articulem políticas federais, estaduais, municipais e não-governamentais focadas na geração e apreensão de conhecimento dos indivíduos e das empresas.

Admito que ainda é um pouco cedo para o grosso do eleitorado entender o valor de uma cidade educadora, em que se valorize o espírito empreendedor, mas estou convencido de que isso é só uma questão de tempo.

PS - Um simples exemplo do que significa gerir recursos -em vez de construir obras- já foi lançado como idéia na campanha paulistana. É um detalhe, mas simbólico. O sambódromo fica, na maior parte do tempo, ocioso. José Serra está propondo torná-lo área complementar à escola, com atividades culturais e esportivas. Retoma idéia que constava dos projetos de Luiza Erundina, que construiu, quando prefeita, o espaço. Outro símbolo é o fechamento da avenida Paulista, aos domingos, implantado por Marta Suplicy, para atividades culturais e esportivas em associação com entidades comunitárias; está nos planos para este ano formar mais corredores do lazer, impedindo o trânsito de carros e unindo várias avenidas entre os parques. A prefeita se mostra muito mais conectada com o futuro quando fecha uma rua para os pedestres (o que é barato e gera contato humano) do que quando abre buracos para os carros passarem (o que é custoso e pouco resolve).


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
02/06/2004 Um som estrangeiro em Sampa
01/06/2004
Os professores precisam ser salvos
30/05/2004
Professor sabe-nada
28/05/2004
A escola de invenções de Ziraldo
24/05/2004
São Paulo não é um quintal do Brasil
23/05/2004
Marta é vítima do machismo ou da futilidade?
19/05/2004
A menina do largo do Arouche
17/05/2004
Como escolher um prefeito
16/05/2004
Quem quer "ficar" com São Paulo?
13/05/2004
A saída é Lula pedir desculpas