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REFLEXÃO


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urbanidade
12 /11/2003

A capital da solidão

Às vésperas de completar 450 anos, São Paulo sintetiza a solidão coletiva no assassinato do casal de namorados Felipe Silva Caffé e Liana Friedenbach.

Os corpos juvenis, dilacerados, condensaram o estado de ânimo de uma cidade que se sente abandonada, desamparada e indefesa. Entramos no século 21, a chamada era do conhecimento, vivendo acuados e praticamente escondidos em cavernas -versões pré-históricas dos condomínios-, com a suspeita de que, a qualquer momento, quase ao acaso, pode acontecer alguma tragédia. Coabitam intimamente a tecnologia de informação mais sofisticada, que gera redes eletrônicas de diálogo, com a barbárie da falta de contato.

Na terça-feira à noite, quando terminou o suspense de dez dias e se revelaram os detalhes escabrosos do crime, espalhou-se um sentimento de derrota coletiva. Muitos viram naqueles corpos um pouco de seus irmãos e filhos. Ou mesmo um pouco de si próprios. Doeu especialmente o fato de que Felipe e Liana queriam encontrar a paixão, na paisagem bucólica, protegida -e se perderam da vida. É como se dissessem que, nesta cidade, sonhar é perigoso.

Para definir São Paulo em seus primeiros séculos, quando ainda não se notavam os sinais da metrópole vigorosa e criativa, o jornalista Roberto Pompeu de Toledo dá-lhe o título, em seu livro lançado nesta semana, de "A Capital da Solidão". Por séculos, a cidade não passou de um vilarejo quase esquecido, apenas um ponto de passagem.

Mas São Paulo empanturrou-se de gente, que vive espremida, mas tão distante. A violência do convívio diário, provocada pelo medo do próximo, destroçou o sentido de comunidade. O outro passou a ser um risco; o espaço público, um campo de batalha.

O casal de namorados despertou, pelo medo, uma espessa onda de solidariedade e produziu a sensação fugaz e acolhedora de coletividade, de humanidade. Todos se perceberam na mesma trincheira, bombardeados por inimigos sem farda, sem líderes.

A guerra declarada entre nações é mais reconfortante pela possibilidade, ainda que remota, de haver um interlocutor com o qual assinar um tratado de paz. Não sabemos com quem dialogar. Na tragédia de Felipe e Liana está a tragédia de uma cidade de homens e mulheres solitários.




Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, às quartas-feiras.

   
 
 
 

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