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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
14/03/2004
As valiosas lições de dona Lindu, mãe de Lula

O presidente Lula aproveitou o Dia Internacional da Mulher, na semana passada, para reverenciar sua mãe, Eurídice Ferreira de Melo, a dona Lindu, que morreu sem saber ler e escrever, mas nunca deixou, segundo ele, de forçá-lo a estudar. Até os 10 anos de idade, porém, Lula ainda era analfabeto.

Dona Lindu constitui, de fato, um símbolo desse tipo de mulher que, apesar de todas as dificuldades e sem o apoio de marido, não se rende à miséria e estimula nos filhos valores como o trabalho e o saber. Ela é dessas heroínas que merecem mesmo todos os tributos - é improvável que o Lula analfabeto até os 10 anos de idade viesse a ser o Lula presidente sem esse exemplo.

Mas, além de ter sido vítima do analfabetismo, dona Lindu padeceu de outro tipo de ignorância, jamais citado pelo presidente - uma ignorância que também a elege símbolo de um Brasil que ainda persiste.

Como milhões de mulheres pobres, ela não teve condições de planejar o tamanho de sua família: gerou 12 filhos, quatro dos quais morreram ainda pequenos. O pai de Lula, aliás, teve com outra mulher mais 13 filhos.

Só a devastadora combinação da ignorância popular com a irresponsabilidade pública explica que cheguemos ao século 21 com a seguinte estatística do IBGE: as mulheres mais pobres têm, em média, cinco filhos. Como as mais abastadas sabem quanto custa educar uma criança, não têm, em média, mais de um filho.

A miséria brasileira pode começar nos baixos salários, no desemprego, nas péssimas condições de ensino, mas, certamente, é na falta de planejamento familiar que se reproduz e se alimenta.

A semana passada trouxe mais dados reveladores sobre a barbárie sexual brasileira. Uma pesquisa de âmbito nacional da Unesco, divulgada na segunda-feira, informou que 50% dos jovens de Fortaleza e Goiânia -assim como 40% dos de Belém, de Vitória e de Porto Alegre- não utilizam a camisinha.

De acordo com a Unesco, na faixa de 10 a 14 anos de idade, 33% das estudantes de Fortaleza engravidaram, bem como 22% das de Cuiabá. Em todo o país, mais de 10% das crianças de 10 a 14 anos tiveram relação sexual.

É compreensível, portanto, a informação divulgada na semana passada pelo Ministério da Saúde: a incidência do vírus da Aids entre meninas de 10 a 19 anos é seis vezes maior do que entre meninos da mesma idade.

Para sintetizar esse estado de barbárie sexual, basta lembrar que, anualmente, 1 milhão de mulheres que mal saíram da adolescência têm filho.

Ao lançar a campanha da fome, acenando com seu passado, Lula nem se incomodou em atentar para o óbvio a partir de sua vivência familiar: a importância de ajudar a mulher a produzir menos famintos.

Existem, aqui e ali, experiências interessantes, como a distribuição de preservativos em escolas públicas combinada com a formação de professores. Existem também planos antigos e tímidos do Ministério da Saúde. Mas isso ainda é pouco.

O planejamento deveria ser encarado como um dos tópicos vitais da agenda educacional brasileira -é o direito das cidadãs de obter informações e meios para determinar quantos filhos querem ter. Será que dona Lindu, tão ciosa da educação, teria tido 12 filhos? Seria justo uma mãe ver quatro de seus filhos morrerem por causa da miséria?

Em suma, a educação sexual, aí incluindo o planejamento familiar, deveria ser posta no mesmo patamar, por exemplo, da luta contra o analfabetismo. Teria sido uma das boas lições, além da tenacidade no saber, que dona Lindu poderia ter deixado a seu filho mais conhecido.

Não consigo entender como Lula fala tanto e com tanta emoção das lições que aprendeu com a miséria - a fome, o analfabetismo, a falta de condições de hospitais-, mas não pronunciou até agora uma só palavra sobre o efeito devastador do excesso de filhos nas famílias mais pobres.

Justamente aí está a combinação da ignorância do povo com a irresponsabilidade das autoridades, que parecem não se incomodar, de fato, com as centenas de milhares de crianças que, atiçadas a pedir dinheiro nos semáforos ou a engrossar a legião de marginais e marginalizados, são vítimas da omissão.

PS - Embora discorde da posição da Igreja Católica sobre planejamento familiar, entendo-a e respeito-a, afinal, os padres se baseiam em princípios morais e religiosos-, mas não entendo nem respeito intelectuais e técnicos para os quais não deveríamos nos preocupar com o problema, já que a taxa de fecundidade está caindo. Eles deveriam sair por um instante de seus gabinetes e andar por um bairro de periferia para ver a penca de crianças em volta de uma mãe adolescente.



Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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