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REFLEXÃO


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urbanidade
24/01/2007
O herói de rua

Negro, filho de faxineira e de pai desconhecido, ex-interno da Febem, ele aprende, na marra, os segredos das ruas

Ricardo Elias é uma exceção. Viveu na zona leste, cursou escola pública e graduou-se na disputada Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Virou cineasta, premiado em festivais dentro e fora do Brasil. O personagem Heracles, que ele coloca nas telas do circuito comercial no começo do próximo mês, vem também da periferia, mas é a regra: não teve escolaridade e sobrevive de um subemprego. "Queria Heracles como uma das sínteses da cidade", conta Ricardo. Seu filme, intitulado "Os 12 Trabalhos", terá pré-estréia hoje, na Cinemateca, como parte das comemorações dos 453 anos de São Paulo.

Negro, filho de faxineira e de pai desconhecido, ex-interno da Febem, ele aprende, na marra, os segredos das ruas e, assim, vai conhecendo as profundezas da cidade -Heracles é a tradução romana de Hércules, o semideus grego que, para obter o perdão por seus crimes, é obrigado a executar 12 trabalhos. "A grande missão do personagem é sentir-se respeitado."

O personagem é um motoboy, integrante dessa tribo paulistana de 300 mil pessoas. Ao cruzarem todos os bairros, eles fazem a conexão de um espaço desconectado, repleto de obstáculos e armadilhas. "Sua própria existência é reflexo do caos do trânsito." Chamou a atenção do cineasta o fato de os motoboys viverem em condições trabalhistas precárias e, quebrados, encherem os prontos-socorros dos hospitais. "Desse ponto de vista, são heróis urbanos."

Eles testemunham a multiplicidade e as contradições de uma cidade. Estão sozinhos em suas motos, mas contam com uma rede de solidariedade. "Em meio à selvageria urbana, Heracles vai se seduzindo pelas pequenas gentilezas urbanas."

A periferia é marcante na obra de Ricardo Elias, presente no seu premiado "De Passagem". Foi na Vila Matilde, zona leste, que se divertia com a pequena criação de cabras de seu avô, um imigrante sírio. Ali, no bairro, aprendeu a apreciar cinemas ao freqüentar o cinema São Sebastião. Depois o cinema sumiu, dando lugar a uma igreja evangélica. Achou uma coincidência quando "Os 12 Trabalhos" ganhou o festival da Espanha -o prêmio chama-se San Sebastian.

Mas, assim como aquele cinema de um então bairro pacato, sumiu a periferia em que se podia viver sossegado criando cabras. Periferia passou a se traduzir por exclusão e violência, como sentiram, na pele, o diretor mas também o ator principal.

O ator que faz o papel de Heracles (Sidney Santiago) é filho de um pescador que vivia na periferia do Guarujá. Venceu os preconceitos e estudou balé clássico. Atualmente, se dedica a aprender canto na USP -assim, nos "trabalhos" que enfrentou na vida real, ele acabou se aproximando tanto da trajetória de seu diretor, Ricardo Elias, como, principalmente, de seu personagem.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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