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dedicação
13/09/2004

Liderança feminina no Terceiro Setor é marcada por sacrifícios pessoais

Há 25 anos, Sirlei Tarragô Urbani, 50 anos, colocou sua profissão como assistente social, a serviço da sua comunidade, os moradores de Carapicuíba, cidade da região metropolitana de São Paulo. Ali, ela conquistou a amizade, o apoio e a cooperação para construir, com passos de formiguinha, como ela diz, algo melhor para todos. Garra, força e renúncia fizeram parte diariamente do seu trabalho. Sua dedicação e vontade de mudar a realidade local transformaram Sirlei em uma líder comunitária.

A liderança das mulheres no Terceiro Setor sempre se fez presente. Especialistas e profissionais que atuam em organizações acreditam que, apesar de não existir pesquisas a respeito do assunto, as mulheres são a maioria à frente das entidades. Júnia Puglia, oficial de programa do Unifem para o Brasil e Cone Sul (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher), lembra que hoje, o trabalho comunitário tem maior visibilidade graças à luta das próprias mulheres que, em sua maioria, prestam esse serviço gratuitamente para a sociedade, e não recebem como deveriam o devido valor tanto em termos econômicos quanto sociais.

"A mulher sempre teve e terá um papel fundamental nas práticas do Terceiro Setor. Além de se preocupar em 'cuidar das pessoas', a mulher tem sensibilidade, poder de articulação e capacidade técnica, administrativa e financeira", comenta Vera Vieira, coordenadora-executiva da ONG Rede Mulher de Educação, que desenvolve projetos e cursos que incentivam o protagonismo, autonomia e liderança das mulheres brasileiras.

"As mulheres têm uma garra e força. Elas sabem demonstrar afeto e emoções e têm um olhar diferenciado. É uma característica própria. Essa questão da sensibilidade é para todos, mas pela própria essência, a mulher é voltada para isso", completa Sirlei.

Vera afirma ainda que, o primeiro passo que a mulher deve dar, é conscientizar-se de seu poder de liderança, pois, com a auto-estima baixa, muitas até se assustam quando se "descobrem" líderes. Elas devem também exercitar seu poder de diálogo, praticar o trabalho em equipe e utilizar sempre sua sensibilidade, "não copiando o modelo masculinizante de poder, que é mais vertical".

Esses foram os instrumentos utilizados por Sirlei para dar novos rumos a sua vida e também da sua cidade. Seu primeiro trabalho em Carapicuíba se deu ainda quando era estagiária. Sirlei se envolveu em um movimento estudantil chamado Aliança Bíblica Universitária do Brasil, que trabalha a questão da sensibilização e da consciência social do estudante e do profissional colocando sua profissão a serviço da comunidade.

O grupo, formado por 40 estudantes de diversas áreas, começou a desenvolver um trabalho na cidade com um grupo de mães. Em 1982, os jovens fundaram o Projeto Missionário Vila Capriotti - o Centro de Educação Cuca Legal (nome fantasia) -, com uma verba conquistada junto ao movimento na Alemanha. "Era uma visão motivada pelo contexto político de 1980 com muitas greves e mobilização política. Queríamos mudar o mundo. A gente foi para lá achando que ia fazer tudo certinho, mas a estratégia de envolvimento com a comunidade no início não foi correta. Primeiro compramos a sede, e depois, aos poucos, é que fomos envolvendo o pessoal da comunidade. Depois precisamos resgatar esse contato. Foi muito difícil. Éramos muito idealistas. Quando você vai para a comunidade, vê que a realidade é bem diferente. Não precisa usar tanta técnica. Basta você se relacionar, se envolver e ter um trabalho coletivo. È necessário saber ouvir as pessoas, as suas necessidades e priorizar estas necessidades junto à comunidade".

Depois de formada, Sirlei trabalhou três anos no projeto rural Bem-Estar do Menor, na cidade de Sabinópolis, no nordeste de Minas Gerais. Mas, acabou voltando para Carapicuíba. "Acho que uma questão de vocação, de olhar a necessidade do outro, com ideologia de construir um mundo melhor. Vem de dentro mesmo", ressalta. Quando chegou na cidade, a equipe tinha se reduzido a apenas seis pessoas. Do grupo antigo, somente Sirlei e o marido permaneceram. Neste dia, Sirlei assumiu um grande desafio. "A gente pensou: e agora? Chamamos a comunidade e dizemos: essa casa é de vocês. Ou vocês entram ou a gente fecha".

A comunidade aceitou a proposta e o trabalho não parou mais. No início, Sirlei trabalhava também na área de psiquiatria no Hospital das Clinicas e só atuava aos finais de semana no projeto para ajudar nas despesas da casa. No entanto, ela percebeu que o projeto precisava de alguém que tivesse um olhar histórico e resolveu se dedicar integralmente ao trabalho. Um grupo de amigos de Sirlei se reuniu e formou a Sociedade dos Amigos Informais de Vila Capriotti, para dar um apoio financeiro para que Sirlei pudesse ao menos colocar gasolina no carro para ir até o projeto. "Aos poucos esse apoio foi diminuindo. Foi um trabalho praticamente voluntário", conta.

Sirlei teve que se aprimorar, fazer cursos até na área de pedagogia para desenvolver as ações. Há três meses, a organização lançou o Projeto Cuca, com 18 crianças, de 7 a 10 anos, que trabalha conhecimento, união, cultura e ação. São atividades de artes, música, reforço escolar, dando ênfase na leitura e escrita e na linguagem oral. A ONG conta ainda com uma creche, com o atendimento a 50 crianças de 3 a 6 anos, grupo de alfabetização de adultos e grupo de mulheres. "A idéia é trabalhar as famílias como um todo, num processo global e respeitando a questão da cidadania".

Hoje, a diretoria do projeto e os educadores são pessoas da comunidade. Para Sirlei, "a ação comunitária é algo muito maior do que prestar um atendimento socioeducativo em um determinado bairro. A nossa luta é também no campo das políticas públicas de assistência social". Com essa visão, Sirlei se envolveu em outros trabalhos na cidade. Ela é conselheira municipal, este ano suplente, do Conselho de Assistência Social e tem apoiado a elaboração de cursos para a Secretaria de Promoção Social. "Carapicuíba é um município de mais de 500 mil habitantes, com um perfil de município dormitório. Cada quatro ruas é um bairro. A dotação orçamentária para assistência social no ano base de 2002, é de menos de 0,05%. Tem cerca de oito creches públicas para 500 mil habitantes. Tem creche que tem 3 mil crianças esperando", relembra.

A proposta da assistente social é promover um trabalho em rede entre as organizações, já que a cidade conta com 40 entidades sociais cadastradas, mas Sirlei aponta que há mais de duzentas só como sociedades amigos de bairro. Em 2003, juntamente com outras lideranças, Sirlei promoveu uma reunião com seis entidades, que organizaram um documento mostrando a situação da cidade e apresentaram para os vereadores e o prefeito. Agora, o grupo espera resposta e ação por parte do governo. "Acredito que algumas pessoas fundamentais dentro da área social precisam ampliar o que significa uma ação social mais transformadora. Mas a gente acredita que isso é a rede, a troca e a capacitação e a representatividade é que faz a gente crescer mesmo".

Sirlei participa ainda como coordenadora de relações sociais da Associação Cirandar. A rede, fundada em 1998, tem a participação de 50 entidades. A proposta é: entidade gestando entidade. O trabalho é de forma horizontal, com a participação de todos. Um dos trabalhos desenvolvidos pela Cirandar é o Projeto Capacitando Liderança, que pretende incentivar a participação mais ativa das diretorias formais das organizações.

Durante todos estes anos de atuação, Sirlei garante "que a satisfação de atuar na área social é enorme e os ganhos são fantásticos". "Você deita e dorme feliz. Com a consciência que fez o que devia ser feito". No entanto, a líder comunitária conta que todo este trabalho é repleto de dificuldades. Além da falta de recursos para manter os projetos, a vida pessoal também fica de lado em diversos momentos para dar lugar às necessidades da comunidade. Em sua opinião, o trabalho comunitário exige muito sacrifício. "Você renuncia alguns valores do ter para buscar os valores do ser. Mas é desgastante. Eu geralmente estou cansada. O líder comunitário não sabe falar não. E isso, às vezes, é sofrido. Mas tem que aprender. O líder sacrifica a ele mesmo. O cuidado pessoal fica a desejar. Eu tenho dois filhos, de 16 e 12 anos e eles ainda precisam muito de mim também. Tenho que aprender a equilibrar esse meu ideal com a família".

"O líder precisa ter valores e ter consciência de cidadania, de solidariedade, de co-responsabilidade e de co-participação. A principal característica é saber ouvir. É preciso ter afeto. Não ainda ser um líder e impôr os seus valores. Estou cansada de ver autoritarismo", comenta.

Sirlei conta que, infelizmente, para ela manter o seu ideal, tem que ter dois ou três trabalhos, pois, como lembra Júnia Puglia, o trabalho social não é reconhecido ainda. Atualmente, Sirlei presta também assessoria a entidades sociais, como o Instituto do Terceiro Setor Evangélico, e outros serviços pontuais. Ela afirma que o serviço social, por exemplo, é ainda uma profissão muito desvalorizada.

A assistente social garante que a palavra certa para toda a sua dedicação e trabalho é paixão. Apesar de estar preparando outras lideranças para assumir o seu lugar na entidade, Sirlei não pretende se afastar da área social. Seja numa entidade ou promovendo redes de contato entre as entidades, a líder diz pretender "morrer assim". Na opinião de Sirlei, apesar das mulheres serem maioria no Terceiro Setor, é necessário um trabalho maior das entidades para que as mulheres possam realmente se tornar líderes e ter consciência do seu potencial.

"Precisamos priorizar este espaço de participação das mulheres. Elas têm muito para dar. Existem líderes comunitárias natas. Falta proposta das organizações para isso. Os projetos atuais não tratam da própria questão da mulher e o papel dela na sociedade".

Ações de fato
Algumas ações nesta área vêm despertando no país. Desde 1997, o Centro de Liderança da Mulher (Celim), com sede no Rio de Janeiro, atua na formação de mulheres com potencial de liderança para que participem dos processos de decisão e influenciem a sociedade.

Dalva Maia, integrante da entidade, conta que a proposta surgiu a partir da constatação de que havia uma necessidade de capacitar mais as mulheres, pois estas já realizavam bons trabalhos, mas sem apoio para ampliá-los e qualificá-los.

Com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Celim já formou 350 mulheres de todos os Estados brasileiros. Atualmente, o centro estabelece parcerias com outras entidades para o desenvolvimento de cursos e palestras, a fim de que as mulheres se conheçam e desenvolvam suas capacidades de liderança. O Celim já criou núcleos de replicação no Ceará, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.

A Rede Mulher de Educação também promove ações com este enfoque. A organização está à frente do Curso para Mulheres Jovens Líderes sobre Governabilidade Democrática, que irá ocorrer de 8 a 13 de novembro, na cidade do Rio. O curso irá reunir cerca de 30 mulheres líderes jovens dos países do Cone Sul, de 18 a 35 anos. O curso irá abordar temas fundamentais, tais como, desafios da democracia; a participação política da mulher; estratégias e comunicação política; e técnicas de negociação e liderança democrática. Segundo Vera Vieira, a idéia é preparar jovens mulheres para o exercício da liderança, "aumentando com isso as chances de um mundo mais igualitário, entretanto sem ocupar cargos de poder, onde são tomadas as decisões, fica difícil avançar".

A coordenadora aposta numa capacitação para o exercício da liderança sob a ótica das relações de gênero, abordando temas como poder, resolução de conflitos, negociação, redes, parcerias e alianças. "O impacto dessas ações é primordial, pois vai alicerçar esse caminho. Como, milenarmente, o poder e as oportunidades foram negados à mulher, ela necessita de capacitação para lidar com todos esses desafios e conflitos", comenta.

DANIELE PRÓSPERO
do site Setor3

Rede Mulher de Educação
Endereço: rua Coriolano, nº 28, Vila Romana, São Paulo, SP, CEP: 05047-000
Telefone: (11) 3873-2803
E-mail: rdmulher@redemulher.org.br
Site: www.redemulher.org.br

Centro de Liderança da Mulher
Endereço: rua Lopes Quintas, nº 211, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 22460-010
Telefone: (21) 2511-0142
Site: www.celim.org.br

 
 
 

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