O
inferno do Carandiru vai ao paraíso? Talvez
Filme
brasileiro mais aguardado do ano, "Carandiru", de
Hector Babenco, perdeu seu cenário real com a desativação
do presídio. Mas o cenário imaginário
continua. Aquele amontado de pavilhões tornou-se um
símbolo da degradação e da marginalidade
não só de São Paulo mas de todo o país.
O que
vou escrever agora vai fazer muitos dos leitores rirem ou
debocharem desta coluna: o Carandiru tanto se presta a ser
a síntese do pior que somos como também se habilita
a virar a síntese do que melhor podemos ser.
Tivemos de chegar a um consenso sobre como se deveria enfrentar
a inflação e, depois disso, ela despencou. Está
em construção, neste momento, o consenso para
enfrentar a delinquência.
A lição
do passado já é conhecida. Está, por
exemplo, no filme "Pixote", também de Babenco,
que conta o que acontece quando não investimos na educação
de crianças e adolescentes. Se os "pixotes"
não morrem na rua (no caso, o personagem viveu, mas
o ator morreu, vítima da polícia), acabam em
algum Carandiru.
Mas a
lição do futuro também está ali:
ao se transformar, como está previsto, num centro educacional
para jovens, o Carandiru revela o único mecanismo viável
de prevenção da delinquência.
A perspectiva
do futuro resume-se no fato -de um simbolismo extraordinário-
de que celas viram salas de aula, ou seja, o que antes prendia
agora liberta.
Sinais
nítidos desse consenso foram emitidos na semana passada.
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) lançou um plano
de segurança social que articula os programas de inclusão
dispersos em suas secretarias. Estabeleceu-se o foco na criança
e no adolescente, além de um território geográfico
de atuação.
A boa
novidade do plano é que não há nenhuma
novidade. Foi proposto só um modelo integrado de gestão,
o que é o óbvio dos óbvios em qualquer
botequim.
Saber se as medidas são boas não depende do
bom-mocismo das intenções.
Ninguém
lança um plano para deixar o pobre mais pobre. A questão
relevante é a gerência -o que, por enquanto,
é uma incógnita. Elogiar as intenções
de programas sociais, todos necessariamente bem-intencionados,
é uma bobagem.
O fato
inquestionável: projetos articulados, focados e delimitados
funcionam.
Índices de criminalidade estão caindo mais rapidamente
nos bairros periféricos da cidade de São Paulo
em que existe distribuição de recursos combinada
com contrapartidas educativas -ou seja, quem recebe o dinheiro
tem de estudar alguma coisa. Os programas são pilotados
pela prefeitura, mas nutridos também com recursos estaduais
e federais.
Mais um
indício do consenso, a ministra da Assistência
e Promoção Social, Benedita da Silva, revelou
na semana passada que estão em andamento estudos para
unificar todas os projetos federais de renda mínima.
Apesar
dos graves problemas de gerência e da vocação
para o marketing, o Fome Zero tem o acerto de concepção
de colocar um foco e estabelecer o território a ser
transformado em eixo transversal de políticas públicas.
Se Lula tivesse mais pressa, tão alardeada em seus
tempos de oposição, não gastaria tempo
tentando criar uma novidade, apenas aceleraria o que já
existe. Mas aí já é outro problema.
Da mesma
forma que, depois de erro em cima de erro, se descobriu como
controlar a inflação, os técnicos desenvolvem
modelos para combater a drenagem de recursos por falta de
foco e falta de encaixe entre as centenas de milhares de
ações sociais.
Demorou
a ser descoberto que, no combate à miséria,
o investimento social sem crescimento não funciona,
como não funciona o crescimento sem investimento social.
Assim como já se sabe que, sem aquela combinação,
polícia apenas enxuga gelo, mas, sem polícia
eficiente, a insegurança não se dissipa.
O sonho
representado pelo Carandiru hoje -a transformação
de celas em salas de aula- é, na melhor das hipóteses,
quase imperceptível. Na verdade, limita-se basicamente
ao mundo das construções teóricas. A
realidade é ainda a bagunça, o desconhecimento
de quem faz o que e de quem recebe até mesmo dentro
de uma simples prefeitura, numa cotidiana "bateção"
de cabeças.
O otimismo
dessa coluna vem da convicção de que a construção
de uma visão dominante sobre determinado problema é
o primeiro passo -e está sendo dado.
Mais dia, menos dia, essa construção teórica,
dispersa em alguns experimentos, será beneficiada pelo
crescimento econômico -sem o qual, mesmo que se façam
os melhores e mais geniais projetos, só haverá
espaço para o "Carandiru", de Hector Babenco.
PS - Por
falar em construção, existem obras fundamentais
na vida de um indivíduo - vai aqui um reconhecimento
público tardio. Parte da minha inspiração
para fazer reportagens sobre a violência contra as crianças
veio do impacto que me causou o filme "Pixote".
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