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saúde
08/10/2004
Crianças e jovens portadores de HIV representam um desafio para o Brasil

Júlia* tinha oito anos quando, por acaso, ouviu uma conversa no quarto do pai e da madrasta e ficou sabendo que era portadora do HIV. Apesar de, desde os seis anos, quando a mãe faleceu, ela tomar diversos medicamentos por dia, a garota não sabia que os remédios eram para combater o vírus.

A doença era - e até hoje é - praticamente um segredo da família. Nem a empregada - que mora na mesma casa -, nem uma prima - que vive com a família - sabem. Na realidade, Carlos* (o pai), Priscila* (a madrasta) e Júlia vivem como se a doença não existisse em suas vidas. "Pra mim, isso não existe. Só lembro que tenho isso quando tenho que ir ao médico ou fazer um exame. Se eu pensar nisso 24 horas, fico pirada", afirma Priscila, também contaminada.

De acordo com Elizabete Franco Cruz, psicóloga e ativista do GIV/GEISO/SE/Unicamp, fingir que o vírus não existe é uma postura bastante comum entre pessoas soropositivas. Embora considere uma situação delicada, ela diz que "fingir que a doença não existe gera um preconceito ainda maior. Se não se fala nesse assunto é porque ele deve ser muito ruim... Além do que, se isso 'não existe', como viver e entender a doença como algo que faz parte da própria vida?", questiona.

Para Elizabete, os pais devem falar sobre a doença para seus filhos desde cedo. "Não contar é como cometer uma violência com a criança. Se você tem um segredo e ninguém te conta, quando você o descobre é ainda pior porque parece que não te contaram porque era muito grave", justifica. Ela afirma que isso pode ter uma série de implicações na auto-estima e no tratamento do paciente.

Medo e sexualidade
Assim que Júlia descobriu que estava infectada, sentiu medo. Foi imediatamente conversar com a madrasta, que contou que ela provavelmente contraíra o vírus ainda bebê, através da mãe, que deve ter sido infectada pelo pai. Aos poucos, ela foi entendendo e o medo passou. Hoje, a menina tem 14 anos. É uma adolescente típica, bastante tímida, mas que gosta de curtir a vida. Ainda não tem namorado, não quer "ficar" com ninguém, mas diz que quando isso acontecer, vai ser "natural". Diz que não pensou ainda muito sobre sua sexualidade. Seu sonho é ser pediatra e por isso diz que está se dedicando aos estudos. Na escola, os amigos não sabem de seu "segredo". Júlia diz que não imagina como os colegas reagiriam se soubessem. Mas como tem medo, prefere não se arriscar a contar.

A sexualidade certamente é um tema difícil para qualquer adolescente. No caso do jovem portador do HIV, em algum momento ele vai ter que enfrentar o conflito de dizer ou não a seu parceiro que ele é soropositivo. Elizabete faz questão de ressaltar que todo portador de HIV tem o direito à sexualidade, porque "antes de ser soropositivo, ele é uma pessoa". O que ele precisa é aprender como fazer sexo seguro, como usar o preservativo. Para ela, isso deve ser trabalhado de forma aberta, a partir do diálogo.

Elizabete também afirma que o adolescente tem o direito de contar ou não sobre sua doença, para quem quer que seja. Para ela, não existem regras sobre o que é melhor fazer e em qual momento. Trata-se de uma decisão pessoal. No entanto, acredita que um profissional bem preparado pode acompanhar o adolescente nos momentos de dúvida. "O profissional deve saber qual o significado que a criança dá para a infecção e porque existe o preconceito. Contar ou não depende do caso", afirma. Para ela, o que não pode acontecer é os pais tomarem as decisões pelos filhos; ou avaliarem quê postura os filhos devem ter nessas situações.

Preconceito e mídia
O medo do preconceito parece bastante presente na família de Júlia. Talvez esconder a doença seja a forma de proteção que eles encontraram contra a discriminação. Quando soube que estava infectada, Priscila trabalhava como babá. Resolveu contar para os patrões que estava doente e, imediatamente, foi despedida. Depois disso, não conseguiu mais trabalhar fora de casa.

A mulher diz que existe "preconceito demais" em relação ao HIV/AIDS, mesmo hoje. "As pessoas têm medo de encostar em você, de falar com você quando sabem que você tem isso. Se você tem qualquer doença, câncer, diabetes e vive tomando remédio, tudo bem. Mas se tem isso, te olham de outro jeito". Por isso ela evita falar sobre a doença; considera que o assunto deve se mantido na intimidade. "Eu levo a vida como uma pessoa normal. Afinal, sou normal!", reivindica.

Priscila não se diz satisfeita com as campanhas de mídia. Na opinião dela, a forma como a mídia aborda a questão da AIDS também ajuda a criar o preconceito. Ela lembra que na época em que não sabia que estava infectada e via as campanhas na televisão, achava que aquilo nunca ia acontecer com ela. "Eu não me identificava". Hoje, ela considera que a AIDS continua sendo mostrada de forma errada. "A mensagem que eles passam é que se você tem a doença, vai morrer. As campanhas são muito tristes".

E manda outro recado: diz que a campanha da amamentação, recentemente divulgada na televisão, mostrava sobre a importância de amamentar o filho até pelo menos os seis meses, mas não citava nada sobre mulheres que não podem amamentar suas crianças. As mulheres soropositivas não podem dar de mamar porque podem infectar seus filhos através do leite. Felizmente, Priscila foi bem orientada quando teve a primeira filha "de sangue", hoje com 3 anos, e não a amamentou. A menina não foi infectada com o HIV.

Júlia também acha que as campanhas deveriam ser feitas com mais cuidado. Ela considera que é preciso divulgar mais informações sobre a doença, mas que isso precisa ser feito de outra forma. Só não sabe explicar como...

Segundo plano
De acordo com dados do Ministério da Saúde, desde 1980 e até dezembro de 2003, foram registradas 10.577 crianças (0 a 12 anos) infectadas pelo HIV no Brasil. Um número pequeno quando comparado ao total (310.310), mas que não deve ser desprezado. Os adolescentes e jovens portadores do HIV, que têm entre 13 e 19 anos, são 6.566.

Segundo José Araújo Lima Filho, coordenador geral da Associação François Xavier Bagnoud do Brasil (AFXB), uma casa de apoio para crianças portadoras de HIV/AIDS, diz que os direitos das crianças no Brasil não estão sendo respeitados. "A presença de crianças pedindo dinheiro no farol é uma agressão, assim como a qualidade do ensino público atual. Esse efeito dominó atinge mais fortemente às crianças soropositivas. Mas isso não pode ser desvinculado da temática geral dos direitos da criança e do adolescente, que ainda não são respeitados em nosso país", adverte.

Uma das questões que vem sendo bastante discutida em relação às crianças portadoras de HIV/AIDS é sobre a institucionalização. Elizabete Franco Cruz (que também faz parte do Grupo de Trabalho do Fórum DST/AIDS que discute Criança e Adolescente desde 2001) diz que as casas de apoio surgiram no início da epidemia, para ocuparem o lugar da família de muitas crianças que estavam ficando órfãs. Hoje, no entanto, as organizações da sociedade civil defendem que a criança permaneça em uma família e que a institucionalização só se dê em último caso.

"No passado, as crianças iam para as casas de apoio porque se acreditava que elas não viveriam muito tempo. Hoje, a epidemia está em outro momento, um momento que é de vida e não de morte. A questão agora é: qual vida oferecer para a pessoa que vive com o HIV?", afirma Elizabete.

José Araújo considera que a criança portadora de HIV também tem direito à família, como está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E que uma instituição de apoio, por melhor que seja, nunca funciona como uma família, em que as regras não são impostas, mas construídas em conjunto. "A família nunca é regida por um Estatuto. Por mais que exista carinho, afeto, atenção em uma instituição, isso não é nunca igual ao que acontece em uma família", diz.

Ele ainda afirma que a criança portadora de HIV/AIDS não deveria ser encaminhada para casas de apoio que só recebem pessoas nessa situação. "Quando as crianças são encaminhadas para uma casa de apoio especial, isso cria uma forma de segregação; gera um rótulo que propicia o preconceito". Na opinião de José Araújo, é preciso trabalhar mais com os abrigos de forma geral, a fim de que eles entendam a questão da AIDS. "Essas crianças não cometeram nenhum tipo de infração para estarem segregadas da sociedade", completa.

Pensando com o "bolso"
Outro ponto que também precisa ser aperfeiçoado em relação às crianças portadoras de HIV/AIDS é a questão dos remédios. José Araújo diz que não existem medicamentos adequados para o tratamento das crianças no Brasil. Os meninos e meninas devem tomar os mesmos remédios que são fabricados para os adultos.

Embora o acesso universal aos medicamentos tenha avançado muito no país, a qualidade dos remédios, sobretudo os voltados para a criança, ainda está longe de ser a ideal, segundo José Araújo. Ele explica que os medicamentos geram lipodisdrofia (migração de gordura de uma parte do corpo para outras), provocando alterações físicas tanto no adulto, quanto na criança.

José Araújo conta que, por um lado, a criança vive bem. Por outro, o medicamento cria um problema estético. Assim, algumas crianças e adolescentes não têm coragem de se olhar no espelho. Outras, não querem mais ir à escola, principalmente quando chegam à adolescência.

O coordenador da AFXB afirma que não se desenvolvem pesquisas sobre medicamentos voltados para crianças porque o gasto com esse tipo de pesquisa não compensa para os laboratórios (o número de crianças infectadas é baixo em relação ao de adultos). "Como no caso do desenvolvimento de pesquisas sobre medicamentos só se pensa com o bolso e não com a ética e com o respeito, as crianças são deixadas de lado. E são obrigadas a tomar os mesmos medicamentos dos adultos. O gosto dos xaropes é muito ruim e isso dificulta o tratamento", diz.

Júlia confirma. Até o mês passado, ela tomava muitos remédios, que eram muito fortes. "Eu tinha que tomar o medicamento junto com leite condensado, por exemplo, porque o gosto era muito ruim", lembra. Hoje, ela toma dois comprimidos e se sente bem melhor.

De acordo com a psicóloga Elizabete Franco Cruz, a questão dos remédios para as crianças reflete um problema ainda maior no Brasil que é qual o lugar que a infância ocupa no país. E nesse sentido, qual o lugar da AIDS na infância. Ela afirma que o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), de ajuda mútua para pacientes soropositivos, criou diversas publicações voltadas para crianças e adolescentes, discutindo a adesão aos medicamentos, sexualidade, entre outros. Algumas publicações estão disponíveis para download no site da organização.

*os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

LAURA GIANNECCHINI
do site Setor3

   
 
 
 

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