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28/01/2003 - 02h57

O Brasil precisa de lei para ensinar a história do negro?

ANTÔNIO GOIS
da Sucursal do Rio

A decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de obrigar as escolas a ensinar história e cultura afro-brasileiras atendeu a uma reivindicação do movimento negro, mas está sendo duramente criticada por especialistas em currículo e legislação de ensino.

Os principais argumentos dos especialistas contra a lei, publicada no "Diário Oficial" de 10 de janeiro, são que ela é desnecessária e autoritária.

Desnecessária porque a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), aprovada em 1996, já afirmava que "o ensino da história do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia".

Autoritária porque, segundo educadores ouvidos pela Folha, contraria a tendência, especificada na LDB, de dar mais autonomia para as escolas trabalharem o currículo em sala de aula.

Joel Silva - 22.mar.02/Folha Imagem
"É Necessário que a diversidade da população seja contemplada" (Petronilha Gonçalves e Silva)
Em defesa da lei, a conselheira do CNE (Conselho Nacional de Educação) Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, primeira negra a ocupar um cargo no conselho, argumenta que é necessária para melhorar o conhecimento de professores e alunos a respeito da história dos negros no Brasil.

"Essa lei ajuda a tratar os negros positivamente. É comum encontrarmos livros e escolas que abordam a história do negro de forma simplificada ou até ridicularizada", afirma a conselheira.

Para Ulysses Panisset, ex-presidente da Câmara de Educação Básica do CNE, a nova lei pode engessar o currículo: "Essas medidas se tornam artificiais quando são determinadas de cima para baixo. A LDB deixou os currículos mais flexíveis e deu mais liberdade para as escolas. A liberdade de ensinar, que consta da lei, é baseada num artigo da Constituição. No momento em que você começa a determinar muita coisa, acaba transformando o currículo numa camisa-de-força em que tudo é o governo que diz que tem que ser ensinado".

Guilherme Maranhão - 12.jun.98/Folha Imagem
"Currículo é assunto pedagógico. Não se faz por legislação" (Guiomar Namo de Mello)
Guiomar Namo de Mello, também conselheira do CNE, concorda com Panisset. "Temos uma mentalidade de achar que currículo escolar se faz por legislação. Basta escrever uma lei e ela será aplicada. Currículo é assunto pedagógico. Se não for assim, vira uma árvore de natal. Cada um quer pendurar o que acha importante e sugere o ensino de arte, sociologia ou filosofia, mas ninguém lembra de pensar num currículo harmônico", diz a educadora.

O impacto de novos assuntos na carga do currículo é lembrado também pelo professor da Faculdade de Educação da Unicamp Eduardo Chaves.

"Nossos currículos são centrados na transmissão de informações aos alunos e são enciclopédicos. O pior é que a maior parte das informações transmitidas não tem o menor interesse para os alunos. Se a escola já é perto de insuportável sem mais essa carga, imagine com ela. Educar não é encher a cabeça dos alunos de informação. Educar é preparar para viver", afirma Chaves.

Arte/Folha Online
Panisset relembra seu tempo de estudante no Estado Novo, quando o governo de Getúlio Vargas mandava inspetores às escolas para vigiar se elas estavam cumprindo o currículo da maneira que era determinada pelo MEC. "A lei é obrigatória e o governo precisará avaliar se ela está sendo cumprida. Acredito que esse não é o objetivo do governo, mas me preocupa o caráter autoritário da lei", afirma.

Ele argumenta também que a abordagem da contribuição do negro para a formação do Brasil é tão óbvia que não necessita de uma nova lei para ser colocada em prática: "É de se supor que a escola deva explorar todos os aspectos da cultura brasileira. Como ensinar história do Brasil sem falar da contribuição do negro? Essa contribuição é inequívoca".

Petronilha Silva discorda de Panisset: "As escolas que seguem a orientação da nova lei são raríssimas e, muitas vezes, isso acontece apenas porque há um professor negro ou que estudou o tema".

Ela defende que o MEC crie uma coordenaria para cuidar da implementação da medida nas escolas. Uma das funções desse órgão seria divulgar materiais didáticos que falam da história e da cultura do negro e contribuir para a formação dos professores.

"Há vários grupos de pesquisadores e do movimento negro que produziram excelentes materiais para contribuir com o ensino da história e cultura negra. Na maioria das vezes, no entanto, a tiragem dessas publicações é muito pequena. É preciso fazer um cadastro dessas experiências e divulgá-las para as escolas", diz Petronilha Silva.

Chaves, da Unicamp, se mostra cético com a idéia de um órgão conseguir controlar a aplicação da lei. "Nem o MEC nem nenhum outro órgão controla isso. Nem mesmo os temas transversais propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais —que lidam com questões que são do interesse da maior parte dos alunos, como sexualidade, drogas, violência ou ambiente— são cobertos na maior parte das disciplinas."

Outro questionamento feito por educadores é sobre a reação de outros grupos étnicos que se sentirem pouco representados nos currículos. "Os alemães, os italianos, os japoneses e os árabes vão começar a pressionar para que o ensino de sua história e cultura seja considerado, por lei, obrigatório em todas as nossas escolas", diz Chaves.

Segundo Petronilha Silva, não será necessário criar leis específicas para cada grupo étnico porque a nova lei induzirá, naturalmente, outros grupos a cobrar que sejam mais bem representados no currículo.

"O objetivo da escola é que todos os estudantes se vejam representados nela. Ninguém está propondo uma disciplina específica, mas é necessário que a diversidade da população esteja contemplada. Acho justo que outros grupos também cobrem um melhor tratamento. A lei já aprovada vai puxar o restante."

     

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