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24/06/2003 - 03h20

Entrevista: "A escola não é uma empresa"

FERNANDO EICHENBERG
free-lance para a Folha de S.Paulo, de Paris

Sociólogo e especialista em história do pensamento liberal americano, o francês Christian Laval, 49, é reconhecido como um teórico exigente e um aguerrido militante contra a globalização liberal da educação e as tentativas de mercantilização do ensino. No ano passado, ele organizou o livro "Le Nouvel Ordre Éducatif Mondial" ("A Nova Ordem Educativa Mundial"), um detalhado trabalho acusatório sobre a influência de instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio nos rumos das políticas nacionais de educação.

Divulgação
O sociólogo francês Christian Laval

"L'École N'Est Pas une Entreprise - Le Néo-Libéralisme à l'Assaut de l'Enseignement Public" - Christian Laval, editora La Découverte, € 20
Sua mais recente obra, "L'École N'Est Pas une Entreprise - Le Néo-Libéralisme à l'Assaut de l'Enseignement Public"("A Escola Não É uma Empresa - O Neoliberalismo ao Ataque do Ensino Público"), reforça suas inquietações e alerta para o avanço de um pensamento utilitarista e mercantilista no sistema de educação, submetido a crescentes pressões pela concorrência, pela competitividade e pela rentabilidade.

Numa tarde de intervalo entre suas pesquisas e conferências, Christian Laval recebeu a reportagem da Folha no seu apartamento, na região do Quartier Latin, em Paris, para conversar sobre as ameaças à educação nesse turbulento início de século.

Nas recentes manifestações de professores, em Paris, contra a reforma educacional proposta pelo governo francês, o título de seu livro se tornou slogan pintado nos cartazes: "A escola não é uma empresa". "Acho que vou exigir direito autoral", brincou.

"Le Nouvel Ordre Éducatif Mondial - OMC, Banque Mondiale, OCDE, Comission Européenne" - Christian Laval e Louis Weber (org.), editora Nouveaux Regards/Syllepse, € 10
Laval confessa que há muitos motivos no mundo para a prevalência do pessimismo e não exclui a situação da educação. Mas, apesar de tudo, ele mantém a esperança. O sociólogo acredita que o mundo vive, hoje, um conflito de valores e de civilização entre um utilitarismo pelo triunfo dos interesses individuais e a recomposição institucional em torno de valores coletivos.

Ao ser interrompido no seu raciocínio pela chegada de sua filha Clémence, de 11 anos, que acabara de retornar da escola, retomou a conversa com um desabafo: "Não sou profeta, não sei se meu otimismo tem fundamento, mas sei que haverá muitos embates".

Leia, a seguir, trechos da entrevista:

Folha - Como se chegou a essa escola utilitarista, a essa "nova ordem educativa mundial" estruturada como um mercado?
Christian Laval -
Há muito tempo, sabe-se que o nível de educação tem efeitos econômicos. Essas idéias foram sustentadas pelos economistas, desde o século 19, que conceberam a educação como uma função utilitária, relacionada ao bem-estar, à prosperidade, ao serviço dos interesses individuais. Essa tendência utilitarista adquiriu uma atualidade extremamente forte. Como prova, vemos, por exemplo, a promoção de idéias e conceitos de "capital humano". Por todo lugar, vê-se a mesma lógica aplicada: os estudos devem ser orientados na aquisição de conhecimento, de competência cuja finalidade principal seria econômica. É a chamada "nova ordem educativa mundial". É a escola adaptada ao capitalismo global de hoje, a escola neoliberal, conforme os princípios de uma sociedade que se identifica cada vez mais ao mercado. A escola deve ser organizada e administrada como uma empresa, porque a educação é confundida como um produto privado, uma mercadoria.

Folha - Esse novo modelo já está finalizado e é o dominante em todos os países?
Laval -
Estou longe de pensar que esse modelo de escola neoliberal já esteja completamente implantado. Ele tem contradições enormes. A França ainda não é a campeã desse modelo, mesmo se ela tenta recuperar seu atraso. A Nova Zelândia, por exemplo, está muito mais avançada. Desde os anos 80, se desenvolve no país a idéia de uma lógica concorrencial no ensino, e se criou uma situação na qual se pode optar por tal escola assim como se compra este ou aquele produto de consumo, um carro ou um apartamento.
As consequências são uma desigualdade entre os estabelecimentos e uma polarização social crescente com, em certos casos, um apartheid escolar entre escolas de ricos e de pobres. Quando se tem uma divisão étnica, é ainda mais evidente. É o que vemos em países como a Holanda e a Inglaterra, nos quais os estabelecimentos se distinguem cada vez mais etnicamente.

Folha - Como os organismos internacionais participam e influem nessa "nova ordem educativa mundial"?
Laval -
Eles atuam por impregnação. Esse pensamento liberal, utilitarista e pró-mercado na educação instala-se por familiarização tácita, torna-se o idioma comum. Torna-se evidente falar em performance, eficácia, co-financiamento de educação pública e privada. Houve um tipo de globalização do pensamento educativo segundo o qual o imperativo é a competitividade e que nenhuma esfera social pode escapar a essa lei suprema. Uma economia eficaz depende do emprego, essa é a grande chantagem. Se não há uma economia competitiva, não há emprego, e é preciso que a educação participe dessa competitividade, para que se tenha mais empregos.

Folha - Quais são as formas práticas dessa mercantilização da educação?
Laval -
Em termos práticos, percebe-se que as empresas tentam conquistar o mercado educativo de múltiplas formas. A educação se transforma em produtos vendáveis. É o caso do sistema de e-learning e dos pequenos cursos de apoio escolar, que se desenvolvem bastante nos países asiáticos e na Europa. É o caso das universidades privadas ao estilo americano ou australiano, que se implantam no exterior por meio de campi que não são mais do que verdadeiras filiais.
É o caso da disputa pelos estudantes estrangeiros. Há 500 mil estudantes estrangeiros nos EUA que pagam por seus estudos. Os países brigam entre si por esse mercado, hoje dominado pelos EUA e pelo Reino Unido. Os livros escolares correspondem, na França, a 11% do mercado editorial. É um mercado enorme para as empresas, considerando-se os mais de 1 bilhão de alunos no mundo. Vendem-se livros, tecnologia, computadores, hardware e software. Na França, começa-se a ver também, em escolas comerciais privadas, o patrocínio de cursos específicos por grandes empresas. E há a relação entre a pesquisa universitária e o setor privado.

Folha - O sr. condena tanto as políticas conservadoras como as de esquerda como coniventes com esse sistema, não é?
Laval -
Desde os anos 80, a esquerda teve a tentação completamente legítima de estender a escolarização ao maior número possível de pessoas. Mas, ao mesmo tempo, sob a pressão do desemprego em massa, ela se inclinou cada vez mais à idéia de que a finalidade da educação era o emprego. No lugar de insistir na igualdade das condições de ensino, dirigiu-se à diversidade e ao consumismo, abrindo as portas ao mercado escolar. Ela legitimou a concorrência entre as escolas. Quando o interesse pri
vado domina, ele encontra as melhores razões do mundo para se desenvolver em detrimento do interesse geral. Se há uma enorme diferença de nível entre as diferentes escolas, se a qualidade da educação é diferente, por que meu filho seria desfavorecido permanecendo numa escola que funciona mal? A igualdade de chances se tornou uma retórica.

Folha - O sr. é pessimista em relação ao futuro da educação?
Laval -
Há muitas razões no mundo, hoje, para ser pessimista, e o campo da educação não escapa dessa avaliação. Mais a escola pública será degradada, mais caminharemos na direção da mercantilização da educação. Se a educação for organizada em torno de um sistema de concorrência e competitividade, as sociedades se reforçarão nesse caminho. Eu acredito nas forças contrárias a isso. Num primeiro momento, a escola pública já foi uma resposta a uma decomposição da sociedade. Não sou profeta, não sei se meu otimismo tem fundamento, mas sei que haverá muitos embates. Há uma luta entre as vias do utilitarismo generalizado, pelo triunfo dos interesses individuais, e a da recomposição institucional em torno de valores coletivos.

     

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