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28/10/2003 - 03h16

Perfil: Resistência física

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

São 7h de uma manhã ensolarada e ainda um tanto fria em Belo Horizonte, mas é como se já fosse meio-dia para Mildred Dresselhaus, 72. "As frutas aqui são sempre tão boas. Não temos nada do tipo nos Estados Unidos", elogia, diante da farta mesa mineira. A conversa da física do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA) parece ter ganhado um pouco da rapidez das transições quânticas dos átomos e elétrons que são sua atual especialidade: mal dá tempo de preparar o gravador, e ela já está imersa nos detalhes da história da física no Brasil ou de sua primeira visita ao país, há mais de 30 anos.

João Castilho/Folha Imagem
A pesquisadora Mildred Dresselhaus

Mildred (ou "Millie", como é chamada) diz já ter perdido a conta de quantas vezes esteve no Brasil. "Dez visitas talvez sejam uma boa estimativa", afirma. "Como eu venho entre intervalos grandes de tempo, consigo ver como as coisas na ciência brasileira foram mudando, embora as frutas permaneçam as mesmas." A pesquisadora presenciou boa parte das grandes transformações da ciência do século 20 e foi protagonista de algumas delas. Para começar, o pioneirismo de mulheres-cientistas: ela foi a primeira docente do sexo feminino a assumir uma cadeira no vetusto MIT, em 1973.

Mildred, no entanto, não parece ser do tipo que se acomoda com feitos históricos. Ela deixou de lado os supercondutores, seu campo original de pesquisa, e hoje aposta suas fichas na nanotecnologia —a ciência do infinitamente pequeno, das coisas que existem na escala dos milionésimos de milímetro, onde muitos consideram estar o futuro da eletrônica e da biotecnologia.

Raio-X

Nome: Mildred Spiewak Dresselhaus, 72
Família: casada com o físico Gene Dresselhaus, mãe de quatro filhos (três homens e uma mulher) e avó de quatro netas
Formação: doutorado em física pela Universidade de Chicago (EUA) e pós-doutorado pela Universidade Cornell, também nos Estados Unidos
Profissão: pesquisadora e professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), em Boston, nos EUA
Livros publicados: "Science of Fullerenes and Carbon Nanotubes" (Academic Press, 1996), "Physical Properties of Carbon Nanotubes" (Imperial College Press, 1998)
Hobby: tocar violino


Foi para encontrar colegas e ex-alunos brasileiros nesse campo que ela visitou a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), no último dia 17, e depois passou por São Paulo e Campinas, sede do LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron) —um dos baluartes da nanotecnologia brasileira. "Eu vou sobreviver às palestras", brinca a pesquisadora quando seu anfitrião mineiro, Ado Jório de Vasconcelos, do Instituto de Ciências Exatas da UFMG, lhe pergunta se precisa de um tempo para preparar sua apresentação dali a pouco, às 10h.

Mildred Spiewak (Dresselhaus é o sobrenome que ela ganhou do marido, Gene) nasceu em meio à pobreza do bairro nova-iorquino do Bronx, em 11 de novembro de 1930. Era a época da Grande Depressão, que havia nocauteado a economia depois do crack da Bolsa de Nova York em 1929. "A vida durante a depressão era dura, e nós éramos muito pobres", recorda Mildred, cuja família era formada por imigrantes da Polônia e do antigo Império Austro-Húngaro.

Como muitas crianças da época, Mildred precisou trabalhar cedo na indústria têxtil. "Ainda me lembro de como eu fabricava zíperes", conta. O que a ajudou a prosseguir nos estudos, depois do ensino fundamental, foi uma bolsa de música —ela sempre gostou de tocar violino.

"A vantagem das aulas de música era que, embora alguns alunos tivessem dinheiro e pagassem por elas, havia vários, como eu, que eram bolsistas e estavam lá porque conseguiam tocar como o professor pedia. Eu via vários de meus colegas que estavam lá porque podiam pagar e pensava: 'Puxa, que vida fácil!'. Isso me deu a motivação para chegar ao ensino médio", recorda.

O interesse por matemática e física foi despertado logo nessa fase, mas Mildred quase esbarrou num problema institucional. "Nós tínhamos um conselheiro no colégio, e ele me disse: 'Bem, você sabe, não temos carreiras para mulheres, então é melhor você estudar algo que tenha valor prático. Portanto, quando chegar à faculdade, você deve estudar para se tornar professora primária'. E lá fui eu", conta hoje a física, rindo.

A faculdade, no caso, era o Hunter College, hoje parte da Universidade da Cidade de Nova York. Mildred poderia muito bem ter se dedicado a alfabetizar crianças, até hoje, se não fosse o empurrãozinho dado pela professora de física que conheceu então. Era Rosalyn Yalow, que depois, em 1977, ganharia o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina por desenvolver peptídeos (pedaços de proteína) marcados radioativamente, capazes de medir a atividade de diversas substâncias no organismo humano, como a insulina.

"Foi engraçado, porque ela tinha muitos problemas para seguir sua carreira de pesquisadora. Ganhava a vida, mesmo, dando aulas. O que ela me mostrou, então, foi que era muito difícil para uma mulher fazer aquilo, mas que também esse trabalho era prazeroso", afirma a física.

A partir daí, a carreira científica passou a absorver boa parte do tempo de Mildred, que ficou um ano na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, no famoso Laboratório Cavendish (onde um ano mais tarde, em 1953, os pesquisadores James Watson e Francis Crick formulariam a estrutura em dupla hélice do DNA). Ela voltou aos Estados Unidos para concluir seu doutorado na Universidade de Chicago e se casar com o também físico Gene Dresselhaus, em 1958. Os dois passaram a trabalhar na Universidade Cornell, em Ithaca, e depois arrumaram empregos como pesquisadores no Laboratório Lincoln, do MIT.

Nesse ponto, os quatro filhos do casal já tinham vindo, e Mildred havia passado do estudo dos supercondutores —materiais que, sob determinadas condições de temperatura, conduzem corrente elétrica sem resistência alguma— para a estrutura molecular do carbono, área cuja vertente nanotecnológica ela explora até hoje.

Foi nesse ponto que surgiu a chance de vir para o Brasil, no verão de 1971, graças ao contato com colegas como Rogério Cezar de Cerqueira Leite, físico da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). A idéia era simples: trazer especialistas renomados da Europa e dos Estados Unidos, que ministrariam cursos intensivos de física para os professores de várias instituições brasileiras, todos reunidos na recém-criada Unicamp.

"Só havia dois prédios em pé, todo o resto ainda estava em construção", recorda Mildred. Em cinco semanas, a física e seus colegas ministraram o curso e ainda visitaram diversas outras instituições pelo Brasil.

"Só fomos notar realmente o impacto do que fizemos 20 anos depois", diz Mildred, para quem o trabalho nesses encontros ajudou a estimular o surgimento de centros de excelência na pesquisa física pelo Brasil todo, levando o país a uma posição que, para ela, é de destaque na área.

Hoje, o trabalho da pesquisadora e o de seus colaboradores —entre os quais, muitos brasileiros— se concentra na compreensão dos nanotubos de carbono, uma das promessas da nanotecnologia para criar computadores muito mais potentes. Mas, por enquanto, as aplicações dessa tecnologia ainda são pouco interessantes do ponto de vista científico —meras fibras de carbono ultra-resistentes e capazes de conduzir eletricidade. "Ninguém sabe o que vai acontecer na eletrônica. É sempre difícil [prever o que acontecerá] quando você tem uma nova tecnologia. Veja por exemplo a internet, que era usada por cientistas nos anos 1960 e 1970 e era bastante complicada. Os cientistas não tinham a menor idéia de que isso poderia ser amplamente usado algum dia", afirma.

O mesmo vale, segundo Mildred, para as idéias mais delirantes da nanotecnologia, como o desenvolvimento de nanomáquinas computadorizadas e capazes de auto-replicação, que poderiam, por exemplo, reparar músculos cardíacos avariados molécula por molécula. Mildred diz acreditar numa futura integração entre sistemas nanotecnológicos e biológicos, mas, para ela, não dá para esperar que as nanomáquinas sejam simples cópias dos aparelhos que existem no mundo "macro" do dia-a-dia.
Uma boa dose de imaginação é indispensável para qualquer revolução científica: "Quando você está certo, não importa realmente se não tem muitas evidências. Frequentemente, as pessoas que julgam seu trabalho não vão deixar você publicar, vão dizer: 'Você está imaginando coisas, está sonhando'. Mas, sabe, muito da ciência é imaginação, é sonhar coisas que você ainda não tem".

Com esse admirável mundo novo à frente, não é de estranhar que as viagens e os compromissos impeçam a pesquisadora de passar o tempo que gostaria com a família. Avó de quatro meninas, ela as vê raramente. "Nos EUA, ao contrário do Brasil, as pessoas tendem a se mudar mais. Só um dos meus filhos mora perto de mim, e as netas estão todas longe. Só as vejo nas viagens, mas nunca é suficiente. Elas gostam de me ver, mas não entendem por que eu não posso ficar mais tempo." Nas raras reuniões de família, todos se juntam para tocar, já que Mildred ainda pratica o violino e ensinou os filhos a tocá-lo.

Parece, de fato, um longo caminho percorrido, desde a época em que as mulheres não tinham uma carreira em campo algum, quanto mais no científico. "A presença das mulheres na física mudou enormemente nos últimos tempos, de números que eram próximos de zero a outros mais razoáveis. A proporção que vejo agora é razoável, mas é muito menos que a metade, é muito talento que ainda não está sendo aproveitado. Mas sou otimista e continuo insistindo", afirma.

Sem sombra de cansaço, Mildred se levanta da mesa do café. É hora de mais uma palestra.

     

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