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centro e zona norte

análise

O perfil socioeconômico da área central de São Paulo está em transformação?

A região central de São Paulo pode ser reocupada e reciclada por elites? A questão, em tom menos dramático, é saber se moradores de renda mais alta podem se mudar para o centro e reproduzir ali alguma variante daquilo que se chama de "gentrificação".

Dá para ver sinais dessas mudanças em bairros como República, Barra Funda, Santa Cecília e no recentemente inventado Baixo Augusta. É possível que o fechamento do Minhocão reavive zonas mortas de interesse imobiliário, prejudicadas pelo apagão urbanístico causado pelo elevado.

No entanto, gentrificação não é um processo de hipsterização, como aparece em conversas caricatas sobre transformação urbana.

Nessas histórias, um bairro degradado ou de alugueis baratos passa a ser ocupado por estudantes, jovens artistas e seus comércios alternativos. A reocupação envia um sinal de possível valorização para outros moradores, empresas e poder público. Investimentos privados e oficiais modificam as características da região.

Os preços de imóveis e serviços então sobem, o que expulsa a população local, de perfil mais popular. No sentido original e mais genérico, esse é o conceito de gentrificação.

Mas a alteração do perfil de uma região depende de muito mais do que da chegada de ateliês, teatros, barbearias hipster, bares e restaurantes descolados e marcenarias customizadas. Além do mais, há vários processos de elitização de áreas urbanas.

Há sinais de gentrificação de parte do centro, na região da República. O edifício Copan é um caso emblemático. Antes tomado por quase cortiços, hoje é ocupado também por moradores de classe média ou, em termos estatísticos, ricos.

Os lançamentos imobiliários recentes, universidades e centros culturais próximos, novos restaurantes e ainda mais facilidades de transporte são indícios e motivos de transformação, embora a República seja mista faz tempo. Vide o perfil da avenida São Luís.

Por outro lado, fracassa faz duas décadas a tentativa de gentrificar e de criar um polo de novas empresas na região dos Trilhos e na "Nova Luz". No planejamento público-privado, constavam a construção ou renovação de centros culturais, incentivos fiscais e mesmo promessas de "limpeza social" da região. Entre outros motivos, projetos empacam pela resistência de movimentos sociais e dúvidas quanto à intervenção do poder público. Por bem ou por mal, a Cracolândia persiste.

Nota-se que um conceito genérico não dá conta da variedade de causas e tipos de mudanças no perfil socioeconômico dos bairros. De resto, não se trata de processos de curto prazo. Considerem-se três casos de "elitização" na cidade.

A grande mudança do perfil da Mooca, por exemplo, foi a resultante de muitos vetores. A renda dos moradores originais aumentou, houve mudanças em planos e incentivos urbanísticos para investimento imobiliário e a expulsão de gente mais pobre.

A Vila Olímpia era uma mistura de casas de várias classes médias e galpões vazios de fábricas, uma ilha em parte degradada entre os bairros muito ricos de Vila Nova Conceição, Moema, Itaim e do centro financeiro da avenida Berrini.

Foi integrada aos bairros da "gentry" por meio de obras viárias (Nova Faria Lima) e de contenção das constantes enchentes. Foi um processo de "revitalização" urbana claramente dirigido para sustentar o investimento privado.

A Vila Leopoldina foi gentrificada ou um quase vazio urbano reocupado? Qual foi a influência da inauguração do parque Villa Lobos (um investimento público) no sucesso imobiliário da região? Da proximidade de shoppings, da marginal e de bairros "nobres" (da "gentry"), como Alto de Pinheiros e Alto da Lapa?

O Parque Augusta, de certo modo resultado da crítica a um empreendimento imobiliário, vai incentivar a gentrificação do Baixo Augusta?

As regiões paulistanas centrais e mais ricas foram emparedadas por suas periferias pobres e violentas. É um incentivo para São Paulo crescer para dentro, embora existam outros motivos de interiorização da metrópole, como mudanças na cultura de relacionamento com a cidade.

No entanto, mudanças grandes dependem de capital, que vai se mover na direção de regiões em que existem incentivos ou favorecimentos do Estado, em forma de leis e investimentos públicos. Na contramão, pode haver resistência à modificação social ou até cultural da cara da cidade.

Nos anos 1990 e 2000, a Mooca foi campeã nos lançamentos imobiliários na cidade, seguida pelos distritos da Liberdade e da Bela Vista. Na década seguinte, Santa Cecília ganha ainda mais destaque e a Barra Funda, bairro gentrificável, entra no mapa da expansão. Fora a Mooca, todos na região central.

Essas zonas quentes do mercado imobiliário não bastam para definir processos de gentrificação, mas dão pistas.

Um estudo dos pesquisadores Michelly Reina e Francisco Comarú, da Universidade Federal do ABC, mapeou os lançamentos imobiliários e seu número de dormitórios entre os anos 1990 e 2010, a fim de discutir possíveis processos de gentrificação ("Dinâmicas imobiliárias e políticas urbanas no centro de São Paulo", de 2015. Está na internet).

Observando seus mapas, nota-se também o investimento em imóveis mais caros na região fronteiriça entre Perdizes e Barra Funda e ao longo das ruas Frei Caneca e Augusta, a caminho da região degradada ora chamada de Baixo Augusta.

O metrô, incentivos do planejamento urbano da prefeitura e o esgotamento de áreas em Perdizes talvez expliquem o interesse do mercado pela Barra Funda, que recentemente ganha um ou outro traço "hipster".

O estudo de Reina e Comarú é baseado também em dados da Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio). Uma outra compilação dessas informações feita pelo Secovi (sindicato da habitação) de São Paulo para 2004-2016 mostra que o distrito campeão de lançamentos foi a Vila Andrade, que contém o riquíssimo Panamby e a favela Paraisópolis.

Entre os distritos "gentrificáveis", Barra Funda, partes do Tatuapé e da Penha e Sacomã estão no topo da tabela. Dados de anos mais recentes ajudam a reforçar a impressão de que a região da República esteja passando por esse processo.

É possível que a recessão, especialmente profunda no mercado imobiliário, tenha interrompido esses processos de expansão para o Oeste (Barra Funda) e adensamento ou renovação do Centro (Baixo Augusta, Santa Cecília, República). Mas essas trilhas estão abertas.

Gentrificação surgiu no Reino Unido na década de 1960

O termo "gentrificação" se difundiu a partir de um estudo de 1964 sobre mudanças socioeconômicas de bairros londrinos, da socióloga britânica Ruth Glass (1912-1990). "Gentry" significa "fidalguia".

No caso, tratava-se da ocupação de regiões operárias por profissionais de classes médias, em um movimento gradual, conduzido de maneira privada, em parte favorecido pela reconstrução de áreas destruídas na Segunda Guerra.

As melhorias provocaram altas de preços de imóveis e serviços, expulsando os moradores mais pobres restantes.

O conceito e mudanças urbanas semelhantes, em especial em grandes cidades americanas, abriram um grande e controvertido campo de estudos em urbanismo, sociologia e geografia.

A transformação demográfica e cultural altera o perfil dos bairros? Por exemplo, um grande número de jovens avessos à vida em casas, a famílias grandes e a automóveis pode se mudar para regiões centrais, reciclando parte das cidades.

Noutra controvérsia, debate-se qual a diferença entre projetos de "revitalização" urbana e gentrificação.

Em especial a partir dos anos 1990, grandes cidades lançaram projetos de recuperação de áreas degradadas ou abandonadas porque a atividade econômica local típica entrou em declínio (zonas centrais largadas por moradores ricos e zonas industriais e portuárias, por exemplo).

Trata-se, neste caso, de uma política econômica urbana, muita vez de incentivos ou subsídios públicos a empreendedores privados, sem contrapartidas que preservem interesses de moradores e comércios tradicionais da região, que acabam sendo expulsos, de modo direto ou indireto.

Noutras situações, projetos privados de investimento renovam regiões abandonadas, mesmo sem apoio estatal.

Para alguns autores, porém, esta seria uma estratégia da empresa imobiliária: permitir a degradação de distritos de modo a obter mais ganhos com novos empreendimentos.

Em casos mais amenos, "gentrificação" denomina processos de mudança mais simbólica e cultural. A chegada de alguns novos moradores aumenta a variedade, mas não revira o perfil socioeconômico da região.

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