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clóvis rossi

 

17/02/2012 - 11h16

Um pouco da alma do jornalismo

Jornalistas em geral escrevemos o que vemos e o que opinamos a respeito do que vemos mas raramente contamos o que nos vai n'alma. Por isso, divido com o leitor um texto desta semana de "El País" com a biografia-depoimento da jornalista espanhola Pura Ramos. Vai em espanhol mesmo porque, primeiro, preserva mais a alma da coisa; segundo, é muito parecido com o português e, como o leitor da Folha.com é, por definição, preparado e inteligente, precisará apenas de um esforço mínimo para entender.

Entremeio o depoimento com testemunhos pessoais, como uma espécie de prestação de contas de minha própria alma profissional, de resto muito semelhante à de Pura Ramos.

Vamos lá: "He matado a Kennedy y a su hermano, he matado a dos papas, he tenido la guerra de Dien Bien Phu, he matado a Carrero Blanco, a Franco...". Pura Ramos no es una asesina en serie: solo enumera en argot [jargão, no caso jargão jornalístico] un brevísimo resumen de las muchas noticias que ha escrito. A punto de cumplir 60 años en el oficio, esta periodista de 80 --"me gusta esa edad, es rotunda"-- sigue al pie del cañón. ¿Por qué jubilarse cuando una disfruta de lo que hace?'.

Minha vez, agora. Primeiro, para os mais jovens, explico Dien Bien Phu: foi a batalha em que a França perdeu o Vietnã. Antecede pois a perda do mesmo Vietnã pelos norte-americanos. Carrero Blanco era o almirante que o ditador Francisco Franco Bahamonde havia escolhido para sucessor. Foi assassinado em um atentado atribuído ao grupo basco ETA (Euskadi Ta Askatasuna ou Pátria Basca e Liberdade).

Eu também "matei" muita gente, Franco inclusive. Para minha alegria, devo ter o recorde, inútil mas recorde, de assassinato de ditaduras. Mais exatamente, creio ser o repórter que mais cobriu transições do autoritarismo para a democracia, embora tivesse o desgosto de, antes, ver o inverso: a queda de democracias.

Sobre a agonia de Franco, nunca esqueci uma cena de 1975, o ano de sua morte. Uma dada noite, a Rádio Nacional de España entrou com edição extraordinária para avisar que o estado de saúde do ditador piorara. Entre os jornalistas, corria a brincadeira que de Franco não era imortal, mas era "imorrível".

Parecia que deixaria de sê-lo naquela madrugada, pelo que nos abalamos todos para a porta do Palácio do Pardo, nas imediações de Madri. Era uma escuridão do cão, quebrada vez ou outra quando se acendiam as luzes das tevês. Um dado momento, surge das trevas uma cadeira de rodas com um senhor de muita idade, empurrada por três jovens atletas. Todos franquistas. O senhor, veterano da guerra civil, gritava: "Vayanse, buitres".

Antes que eu me sentisse ofendido por ser chamado da abutre, a vozinha interior que às vezes funciona como meu fio-terra, chamou: "Você não está querendo a morte do homem? Então, é abutre, sim".

É, os jornalistas temos mesmo esses momentos-abutre. Queríamos, sim, a morte de Franco, alguns porque não gostamos de ditadores, outros porque queriam pôr um ponto final a uma cobertura que já se alongava no tempo.

Mesmo assim, eu, como Pura Ramos, mais desfruto do que sofro com o que faço, pelo que tampouco tenho planos de aposentadoria iminente. Ah, também "matei" um papa (ou devo dizer "um, por enquanto"?).

Volto ao depoimento da jornalista espanhola ainda falando de aposentadoria:

"Siempre digo, en Navidad lo dejo... no, en Semana Santa..., no en verano. Soy incapaz de dar ese saltito. ¡Me gusta tanto mi profesión que me cuesta mucho dejarla!". Y ahí sigue, con la curiosidad intacta del primer día, vivo el consejo que le dio Ramón Menéndez Pidal: "Pon toda tu alma en lo que hagas". Tanta pone en lo que dice que el café y el cruasán [croissant ou meia-lua] se enfrían sobre la mesa. Tanta puso, que ni siquiera dejó la tarea cuando, casada con su colega Jesús de la Serna, fueron llegando los hijos. Uno, dos, hasta ocho, en tiempos en los que no se hablaba de conciliación.
"Vivía desparramada entre trabajo, hijos y casa. Allá donde me sentaba me quedaba dormida", relata esta mujer que fue "del periódico al paritorio" algunas veces. Llegó a amamantar a la primogénita en Pueblo, la redacción que había pisado "el 13 de diciembre de 1952" para salir contratada cuando era estudiante de la Escuela Oficial de Periodismo".

Intercalo meu depoimento: por motivos óbvios, nunca fui do jornal à maternidade ou vice-versa, mas confesso, com tardio arrependimento, que, nas três vezes em que minha mulher foi ao "paritorio", eu não dei a ela a devida atenção, porque o "periódico" é amante exigente, mais ainda quando se gosta da profissão.

Ah, eu nem conheço esse Ramón Menéndez Pidal mas sempre pus toda a alma no que faço. Posso até fazer errado, mas a alma está lá, inteira.

Volto a Pura Ramos, agora na cronologia de sua longa carrreira:
"Tras pasar por Informaciones, Nuevo Lunes o la jefatura de prensa del Museo del Prado --"salía del despacho y tenía enfrente Las meninas" [quadro de Velázquez, que está no Museu que então empregava Pura]--, esta experta en información internacional y cultura ahora es redactora de la revista de arte Ars Magazine. "El director me presenta: 'Pura Ramos, la institución'. Y yo pienso en el edificio de la Telefónica en Gran Vía", dice entre risas" [o velho prédio da Gran Vía, uma instituição da velha Madri já não é hoje sede central da Telefónica, que se mudou para um subúrbio que é quase uma cidade própria].

"He matado a Kennedy y a su hermano, he matado a dos papas, he matado a Franco...", ironiza Porque ni se siente una institución ni le da importancia a su papel de periodista pionera, del que habla espontáneamente. "No tengo mérito. No he hecho más que nacer antes", zanja.

"Me preguntan muchas veces si me sentí discriminada, pero es que el mundo era así entonces. No entendías que hubiera discriminación, no se te ocurría que te pudieras saltar una norma. El mundo era como era, no se cuestionaba lo que había. No me daba cuenta de que yo era una excepción".

Meu testemunho: quando comecei a trabalhar no "Estadão", em 1965, não havia uma única mulher na redação. A primeira que entrou virou musa, não por especialmente bonita, mas por única. Do ponto de vista da incorporação da mulher, o jornalismo evoluiu muitíssimo. Houve épocas, na Folha, em que todas as minhas chefes eram mulheres.

Mais Pura Ramos:

"Pero esta vasca nacida en Madrid en 1931 --"los vascos nacemos donde nos parece", bromea-- rompía la pauta. "Las cosas te llegan y resuelves", resume.

Volto a intervir para dizer que eu também nunca planejei nada na carreira. O que vinha, eu encarava - e com prazer, como se sempre estivesse fazendo a coisa mais importante do mundo naquele momento.

Volto à companheira espanhola:
"A Ramos, con "un decalaje entre la edad mental y la edad física", el periodismo le ha dado "inquietud, curiosidad, sentimiento de estar viva". Cuando hay una gran noticia aún siente ganas de estar donde ocurre. "No sé si el periodismo ahora es mejor o peor que antes, es distinto". Y "ya no es bohemio". "Nos hemos hecho más perezosos con Internet y las redes sociales. Esperamos que nos llegue la noticia. Se ha perdido el instinto". Cuando ella empezó, en plena dictadura, "ni siquiera había ruedas de prensa". Para tener las noticias "había que salir a buscarlas", patear despachos. "El periodista es tan efímero como la noticia", sentencia la veterana, más fervorosa del papel que de la pantalla".

De fato, notícia não cai no colo de ninguém, jovem ou velho, famoso ou principiante. Há que ir atrás, "patear la calle", como dizem meus colegas argentinos.

Não sei se os jornalistas mais jovens perderam o instinto, como diz Pura Ramos. Acho que houve apenas uma mudança de maneira de ver e viver a vida. Tempos atrás, almocei com um companheiro nem tão novo nem tão velho, que me fez uma observação que me surpreendeu: disse que a geração dele, que deve estar aí pelos 40 anos, aprendera que a vida não se resume ao jornal, a uma redação.

Para muitos da minha geração, o jornal de fato era a vida. Suspeito que as novas gerações estão mais certas.

Termina o depoimento de Pura Ramos:
"¿Merece la medalla de oro del trabajo? "Y ¿para qué quiero yo ese chisme [brincadeira]?", responde con risa esta mujer "muy feliz", convencida de que "la vida es equivocarse y levantarse a continuación". "Se pasa rápido, así que ¡atrápala!", despide a la periodista".

Pois é, agarre a vida, acerte, erre e levante-se para tentar de novo, acertar e errar. Vale para o jornalismo, vale para tudo.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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