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clóvis rossi
As vozes que as chamas abafam
DE SÃO PAULO
Sentimento de agressão é comum aos muçulmanos, mas a resposta difere entre radicais e moderados
Entender as chamas que se seguiram à divulgação do vídeo que ofende Maomé é relativamente fácil: fanatismo (ou terrorismo, como dizem os EUA, em alusão ao ataque a seu consulado em Bengazi).
O problema é que o vídeo e, depois, as charges do semanário satírico "Charlie Hebdo" ofenderam 1,3 bilhão de pessoas, que professam a fé islâmica e, se fossem todos terroristas, já teriam incendiado o planeta.
É conveniente, por isso, tentar mergulhar nos sentimentos dos não violentos. Quem deu a melhor interpretação para o que pensam os muçulmanos, pelo menos entre as que consegui ler, foi Yaron Friedman, no jornal israelense "Yediot Aharonot":
"Na consciência árabe e muçulmana, Maomé e seus primeiros califas [chefes político-religiosos] do século 7º simbolizam a idade de ouro do islã e a gênese de um império árabe-muçulmano que chega ao século 12 na vanguarda do desenvolvimento cultural mundial".
"Toda ofensa feita ao profeta é cutucar a lembrança do estatuto de inferioridade no qual se encontra, desde o século 19, o mundo árabe-muçulmano em relação ao Ocidente", acrescenta ele.
A análise é tão acurada que ecoa no atual maior inimigo de Israel, o Irã, pelo "site" Farda News, próximo do regime dos aiatolás:
"A cólera provocada pelo filme anti-islã em todo o mundo muçulmano constitui a segunda fase do despertar islâmico, depois das revoluções da Primavera Árabe. O objetivo desse novo levantamento é conseguir se livrar definitivamente da influência do Ocidente no mundo muçulmano".
Até no Brasil há eco parecido. Escreve Mohamed Habib, vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe, depois de citar o que considera agressão do Ocidente: "Os agressores estão se aproveitando da frágil situação dos povos muçulmanos, da sua desunião e fragmentação, dos atritos e conflitos entre as divisões, as quais foram criadas pelos diferentes impérios que dominavam, e continuam dominando, o mundo árabe até hoje".
Bem feitas as contas, o filme e a Primavera Árabe escancararam uma guerra pela alma do islamismo entre moderados e radicais -sem contar os laicos, que foram os primeiros a sair à rua no ano passado, mas agora estão marginalizados.
Nessa guerra, a voz dos moderados repudia o fogo: "Responder com violência, com ignorância, aumentando mais o caos: é exatamente isso que o agressor espera dos muçulmanos. (...) É isso que os muçulmanos não devem cometer", escreve Habib.
Reforça Karim Boukhari, na revista marroquina "TelQuel": "Antes de ir mais longe [nas análises], retornemos simplesmente ao objeto da discórdia, [o filme] 'Inocência dos Muçulmanos'. Não é nada mais que um mau filme, um de muitos, que podemos evitar ver ou podemos ver, nos irritar alguns minutos e esquecer. Nem mais nem menos".
Falta só combinar com a outra ala, a dos que não esquecem nem perdoam, contrariando o Corão, que diz: "Não gostariam que Deus vos perdoasse? E Deus é Perdoador, Misericordioso" (surata -ou capítulo- 24, versículo 22, citado por Habib).
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.
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