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clóvis rossi

 

21/12/2012 - 14h28

Memórias do desvario argentino

Não faz o menor sentido comparar os distúrbios de ontem e hoje na Argentina com eventos similares que levaram o então presidente Raúl Alfonsín a antecipar em seis meses a entrega do poder, em 1989, ou à renúncia de Fernando de la Rúa, em 2001. Para descartar comparações, basta comparar os cenários desses dois anos com o atual.

Comecemos por 1989: Alfonsín foi de fato sitiado por um tsunami de saques a comércios, parecidos com os de quinta-feira. Parecidos até no detalhe: consta que o primeiro mercadinho atacado em Bariloche era de um chinês, assim como aconteceu com os primeiros saques de 1989. Mas tudo o mais é diferente, a saber:

1 - Inflação - Alfonsín foi vítima de constantes surtos hiperinflacionários. No mês de maio de 89, quando se deu a eleição que deveria se realizar apenas em outubro, o índice MENSAL era de exatos 78,4%. Hoje, por mais que o governo trapaceie com a inflação, ninguém diz que supera os 25% ANUAIS. É muito, um exagero, mas não é nem remotamente comparável.

2 - Pobreza - A hiperinflação levou a pobreza dos 25% do início de 89 ao recorde histórico de 47,3% em outubro. No governo dos Kirchner (Néstor e, agora, sua viúva Cristina), ao contrário, a pobreza voltou ao patamar do início de 1989, em torno de 25%.

3 - Entorno político - Alfonsín foi sitiado também pela oposição peronista, que travou parte das reformas que pretendia empreender. Cristina praticamente não tem oposição política. Já a comparação com 2001 esbarra num dado fundamental: Fernando de la Rúa presidiu uma formidável recessão, cujas sementes haviam sido lançadas pelo seu antecessor, o peronista Carlos Menem, que ficara 10 anos no poder (saiu em 1999). No ano em que renunciou, a retração foi de catastróficos 10,7% - índice de país em guerra. Já Cristina/Néstor ajudaram a Argentina a ter, entre 2002 e 2011, um crescimento real de 94%, inigualado no Ocidente. O tão badalado Brasil de Lula não é páreo para essa Argentina, com crescimento médio anual de 6,8% no período.

Se inflação e recessão, combustíveis indispensáveis para distúrbios, não estão presentes, o que está acontecendo, então? A resposta varia conforme quem você ouve.

Se acredita no líder sindical Hugo Moyano, ex-aliado, hoje principal inimigo do governo, a culpa é do mal-estar social: "A realidade é que há gente que não está se dando muito bem. O governo fala como se estivéssemos vivendo na melhor Suíça quando há gente morando sob as autopistas. O governo não se dá por aludido". Rebate Juan Manuel Abal Medina, chefe de gabinete de Cristina: "Roubar televisores [como aconteceu em Bariloche] não é conflito social".

Já Sergio Berni, secretário nacional de Segurança, prefere apontar "intenções políticas" nos distúrbios. E, como quem não quer nada, aponta o dedo para os caminhoneiros, o sindicato que Moyano lidera, ao dizer que, entre as cerca de 100 pessoas presas em Campana [Grande Buenos Aires], havia caminhoneiros ligados ao sindicato.

Diz também que uma pessoa ferida em Bariloche ao tentar sabotar linhas elétricas seria um deputado "que responde à CTA de Micheli" [Confederação de Trabalhadores da Argentina, ala liderada por Pablo Micheli, também crítica do governo].

Posto de outra forma: até que as coisas fiquem mais claras, cabe suspeitar de que alas do peronismo em confronto estão de novo abrindo a caixa de Pandora, um clássico nesse multifacético movimento populista. Matam-se entre elas desde os anos 70.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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