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clóvis rossi

 

04/01/2013 - 14h27

Cinquenta anos, nada ou muito?

Fico tentado a usar um tango argentino para falar dos 50 anos de jornalismo que comemoro neste 2013. O tango é aquele que diz que "veinte años no es nada", e o verbo comemorar na primeira frase já indica que os 50 anos foram leves, não pesaram quase nada.

Não pesaram, primeiro, porque gosto do que faço e, quando alguém sente prazer no seu ofício, leva-o com leveza. Além disso, nunca fui de me programar para ser isso ou aquilo, para atingir esta ou aquela meta. Logo, não senti pressão alguma ao ver que o tempo passava e eu continuava onde estive na maior parte desses 50 anos: como repórter.

Na verdade, fiz a carreira pelo avesso do habitual: comecei chefe e vou terminar repórter. Felizmente.

Digo felizmente porque a grande graça da profissão é a chance que ela me deu de ser testemunha ocular da história do meu tempo. Para isso, é indispensável estar na rua para ver a história sendo feita, retalho a retalho, dia a dia.

Eu não tinha a mais remota ideia de que a história do Brasil estava sendo feita (e muito mal feita) naquela madrugada de 31 de março de 1964 para 1º de abril em que circulava no DKW azul de meu pai entre o Palácio dos Campos Elíseos, então sede do governo paulista, e o QG do então 2º Exército, na rua Conselheiro Crispiniano, no centro da cidade.

Eram os dois pontos do Estado em que se jogava a sorte da conspiração para derrubar o governo constitucional de João Belchior Marques Goulart.

Nem era formado ainda (estava no segundo ano de Jornalismo na "Cásper Líbero"). Começar cobrindo a conspiração para um golpe de Estado ensina mais sobre a história do que poderia aprender na escola.

Vitorioso o golpe, coube-me promover, involuntariamente, o primeiro comício contra ele.

Foi assim: trabalhava na sucursal paulista do "Correio da Manhã", que a ditadura acabaria por sufocar. Um dia foi presa a pintora Djanira da Motta e Silva, amiga da dona do jornal, Nyomar Moniz Sodré Bittencourt. Logo que liberada, Djanira refugiou-se em sua casa de Paraty, então uma cidadezinha praticamente inacessível. Como o pessoal da matriz estava ocupado com os desdobramentos do golpe, mandaram-me para Paraty, sempre a bordo do DKW azul.

Entrevistei a pintora em sua casa na praia, rabisquei um texto recheado de palavras como "tortura", "ditadura", "direitos humanos", mas não podia transmiti-lo da casa de praia porque não tinha telefone (estranho mundo aquele sem internet, facebook, celular, o escambau, mas era o meu mundo da época).

Fomos eu e o fotógrafo Waldir Milagres para a casa da cidade da pintora, em que havia telefone mas não havia luz. Por isso, pus o telefone no beiral da janela para poder ler à luz do poste da rua. Completada a ligação (tampouco havia DDD), ditei o texto. Foi juntando gente na rua. Eu baixava a voz para falar "tortura" ou "ditadura", mas o datilógrafo, do outro lado da linha, exigia: "Fala mais alto, foca filho da puta".

E eu gritava "tortura", e o fotógrafo se desesperava. "Vamos embora, nós vamos ser presos". O desespero dele só aumentou quando dois PMs (ou era Força Pública, naquela época?) se juntaram aos curiosos.

Não fomos presos. Desconfio que a notícia do golpe ainda nem havia chegado a Paraty e, portanto, não havia ainda uma ditadura no Brasil.

Cinquenta anos depois, não há hipótese de algo parecido ocorrer. A democracia parece consolidada e não há notícia, boa ou ruim, que não chegue instantaneamente a Paraty ou a qualquer dos mais remotos rincões do planeta.

Por falar em democracia, talvez ela tenha ajudado a fazer com que 50 anos fossem mais leves. Afinal, tenho o recorde --inútil, mas recorde-- de cobertura de transições do autoritarismo para a democracia: Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Paraguai, Peru, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Portugal, Espanha, África do Sul e momentos das transições no Leste europeu.

Sem falar na passagem de Angola e Moçambique de colônias para países independentes.

É verdade que houve momentos muito duros, durante as ditaduras, mas as festas pelo retorno à democracia foram inesquecíveis.

O retorno à democracia me deu também outro recorde inútil, o de cobertura de eleições. Em todos os países citados (várias vezes em muitos deles) mais na Itália, Reino Unido, França, Estados Unidos, Palestina e talvez mais alguns que estou esquecendo.

Acabei também conhecendo uma imensa coleção de "newsmakers" no mundo todo, de Iasser Arafat a Nelson Mandela, para ficar apenas em prêmios Nobel.
Arafat tinha toda a manha do político convencional. Quando o rabino Henry Sobel me apresentou a ele, na Faixa de Gaza, logo após ter sido eleito presidente da Autoridade Palestina (1994), me disse: "Ah, você é muito conhecido aqui em Gaza".

Pensei em perguntar se a "Folha" vendia muito nas bancas locais, mas me contive porque ele não entenderia a piada. Eu era conhecido de apenas uma pessoa em Gaza, Ahmed Sobeh, que havia sido embaixador da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) no Brasil. Certamente fora consultado pela segurança palestina quando Sobel passou a lista das pessoas que o acompanhariam a Gaza para entrevistar Arafat e meu deu o OK.

O líder palestino aproveitou para um agradinho no jornalista.

A quantidade de governantes com os quais conversei, em entrevistas exclusivas ou coletivas, só me ficou clara na mais recente cobertura de viagem presidencial ao exterior (Dilma Rousseff, Espanha, em novembro). Percebi que havia entrevistado mais presidentes do governo espanhol do que os próprios jornalistas espanhóis que eram setoristas da sede do governo, o Palácio de la Moncloa.

Estive com todos os cinco do período democrático, exceto um (Leopoldo Calvo Sotelo).

No Brasil, também todos da democracia, de José Sarney a Dilma. E com todos, menos Fernando Collor, a relação é ou foi cordial, por mais que tenha criticado todos, às vezes com uma dureza talvez excessiva.

Cordialidade que tende a continuar com eventuais sucessores. Eduardo Campos, o governador de Pernambuco, para mim é apenas o Dudu, o neto do "véio Arraia" (Miguel Arraes), que conheci quando batíamos o sertão pernambucano em um jipão na campanha eleitoral de 1986, que Arraes ganharia.

E Aécio Neves é apenas o Aécinho, neto de Tancredo Neves, o presidente que não assumiu e um desses raros políticos com os quais você troca ideias e sai ganhando.

Serão, se forem, os primeiros presidentes que deveriam me chamar de "senhor", e não eu a eles.

O que significa que 50 anos podem não ser nada, mas são muitos.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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