Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

clóvis rossi

 

12/11/2009 - 20h00

Cenas explícitas de "fast journalism"

Voltemos um pouco ao sábado, na Escócia, mais exatamente ao Fairmont Hotel, luxuriante "resort" de golfe, onde estão reunidos os ministros de Economia e presidente dos bancos centrais do G20, as 21 maiores economias do mundo mais a União Europeia.

Os jornalistas ficamos a uns 800 metros, mais ou menos, de onde está a notícia, confinados a uma gigantesca tenda branca erguida nos jardins do Fairmont. Só podemos passar para o campo deles devidamente escoltados e na hora em que os donos da notícia quiserem.

Claro que sempre se pode pular o muro, digamos assim, chamando alguma fonte pelo celular. O problema é que 11 de cada 10 não atendem o celular, porque as reuniões costumam ser longas. Uma vez, aliás, o então editor de Comércio do Financial Times, Guy de Jonquières, escreveu, sobre reunião da Organização Mundial do Comércio, que as autoridades se reúnem pelo gosto de se reunir, não para chegar a uma conclusão.

A julgar pelo que aconteceu com a Rodada Doha, sobre liberalização comercial, lançada em 2001 e até agora paralisada, acho que o Guy tem razão. Mas voltemos à Escócia.

Para meu azar, que depois viraria sorte, na madrugada daquele sábado, por volta de 1h30, toca o alarme de incêndio no hotel em que estava hospedado. Um "blém-blém-blém" infernal. Acordo bêbado de sono, derrubo o abajur na dupla tentativa de achar o interruptor e simultaneamente me lembrar de onde, exatamente, estava.

Visto o casacão por cima do pijama, desço cinco andares a pé, junto com senhoras de pijama de lã de florzinha e moças de roupa mais ligeira, mas nada que pudesse despertar a sanha do pessoal da Uniban.

Ao chegar à calçada em que os hóspedes ficamos aguardando a ação dos bombeiros, trombo com uma das melhores fontes para o G20, cujo celular eu nem havia acionado porque ele me dissera, em Pittsburgh (cúpula do G20), que não iria à Escócia.

O azar do abrupto despertar é substituído por uma boa conversa sobre o que rolara até então nas negociações. Nada capaz de mudar o curso da história humana, admito, mas o suficiente para me permitir saber exatamente onde estava pisando e o que procurar quando chegasse na manhã seguinte ao Fairmont.

Aí, entra o "fast journalism". A tevê da tenda da imprensa está mostrando o discurso de Gordon Brown, o primeiro-ministro britânico, anfitrião do encontro. Nenhum jornalista presta muita atenção. Já aprendemos todos que a vida são fatos, e discursos discursos são, como diria Calderón de la Barca, se fosse obrigado a ouvir discursos de autoridades.

De repente, porém, aquelas letrinhas no pé da tela dizem que Brown está propondo uma taxa sobre transações, obviamente financeiras que é o que se discute lá.

Soa, na cabeça de quase todos os jornalistas, outro "blém-blém-blém". Taxa sobre transações financeiras é sinônimo de Taxa Tobin, proposta nos anos 70 pelo Nobel de Economia James Tobin, uma mordida de 0,1% nas transações com moedas estrangeiras. Acabou virando objeto de desejo da esquerda porque o objetivo assumido era "pôr areia nas rodas do capitalismo financeiro".

Na minha cabeça, o "blém-blém-blém" é duplo porque, apenas três dias antes, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, dissera que levaria a seus colegas do G20 uma proposta de discutir a volatilidade cambial, usando o IOF sobre transações financeiras como exemplo do que eventualmente se poderia fazer.

Penso: "O mundo mais uma vez se curva diante do Brasil".

Penso também em enviar rapidamente um texto para a Folha, porque já estava praticamente em cima do fechamento da primeira edição (13h em Brasília, 15h na Escócia).

O sexto sentido, que tem me feito acertar mais que errar, avisa: espere um pouco e tente entender melhor.

Bingo. Em pouquíssimo tempo, é desconstruída toda a informação de que Brown propusera uma taxa sobre transações e, portanto, ela entrara na agenda do G20, sensação que ocupara tevês, agências e internet.

Primeira desconstrução: a íntegra do texto do discurso mostra que a taxa era apenas uma de quatro propostas do premiê para fazer com que os bancos paguem pelos estragos que causam quando enfrentam problemas graves.

De quebra, essa primeira realidade derruba a comparação com a taxa brasileira. Esta procura evitar a excessiva entrada de capitais e a consequente sobrevalorização do real. A taxa Brown é animal de outra espécie: visa evitar que o contribuinte pague o estrago no lugar dos bancos.

Segunda desconstrução: o secretário do Tesouro norte-americano, Timothy Geithner, diz que os Estados Unidos "não estão preparados" para aceitar a taxa. Como Brown, no discurso, deixara claro que ela só seria adotada se o mundo todo a adotasse, morreu ali.

Terceira desconstrução, decorrente da anterior: o comunicado final do G20 nem remotamente menciona a taxa.

No dia seguinte, o "Daily Telegraph", porta-voz da oposição conservadora a Brown, tripudia com uma manchete de capa em que anuncia que "o mundo" repudiara a taxa do primeiro-ministro. É um pouco de exagero (Christine Lagarde, a ministra francesa de Economia, apoiou), mas só um pouco.

Na segunda-feira, a desconstrução termina na manchete do "Financial Times" (que não circula aos domingos): "Brown recua do plano da taxa".

O diabo é que nem sempre o "fast journalism" é desmontado tão rapidamente.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página