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clóvis rossi
Quer agressividade? Visite a Argentina
BUENOS AIRES - Quem acha que a campanha eleitoral brasileira tornou-se muito agressiva não esteve na Argentina recentemente. Ou talvez nunca tenha estado porque a crispação política é uma desgraçada característica do país.
Duas comparações bastam para mostrar que a campanha eleitoral brasileira parece quase angelical se comparada com a gritaria em uma Argentina que nem sequer está em campanha (a sucessão presidencial é apenas no ano que vem).
Primeira comparação: Lula prega a extinção do DEM, como antes fizera, em relação ao PT, o hoje presidente de honra do DEM, Jorge Bornhausen.
Mas todo o mundo com um mínimo de sentido comum sabe que ambos falam de extinção política.
Na Argentina, uma incondicional do governo soltou nota que soa nitidamente como ameaça de morte a um jornalista crítico do governo.
Hebe de Bonafini, presidente da Associação Madres de Plaza de Mayo, diz, na nota, que o jornalista (Joaquín Morales Solá, colunista de "La Nación") é uma "víbora venenosa" ao qual "resta pouco tempo".
Tudo porque Morales Solá publicou coluna na segunda-feira sobre a angioplastia a que se submeteu o ex-presidente Néstor Kirchner em um tom que ficou, para o meu gosto, perigosamente próximo de torcer pela morte de Kirchner, também marido da atual presidente, Cristina, e presidente do partido de ambos, o peronista.
Para o gosto de amigos argentinos, capazes de enxergar a crispação com desgosto mas sem tornar partido, Morales Solá foi além da fronteira. No mínimo, sua coluna foi de mau gosto, acham.
Mas a reação de Bonafini foi bem além, na opinião de uma veterana jornalista, Magdalena Ruiz de Guiñazú. Para ela, as palavras de Bonafini "são uma franca incitação à agressão pessoal, que tantas vítimas deixou em nosso país".
Referência quase direta ao fato de que Bonafini preside uma entidade que teve relevante papel na luta contra a ditadura, que fez desaparecer tanta gente na Argentina. Com a democracia, no entanto, a presidenta das "Madres" enlaçou, completa Guiñazú, "a sagrada causa dos direitos humanos com o vai-e-vem da política" (tornou-se uma incondicional dos Kirchner).
Pior: tempos atrás, Bonafini defendeu a ETA, o grupo terrorista basco que mata indiscriminadamente na Espanha, como a ditadura o fazia na Argentina.
Segunda comparação: a nota de Erenice Guerra, agora ex-ministra, dizia que o adversário José Serra é aético e "derrotado". Segundo a "Folha" nem o Palácio do Planalto gostou da nota.
Muito bem: na Argentina, adversários do governo são chamados de "canalhas", pura e simplesmente, pelo jornalismo chapa-branca. Aliás, esse tipo de jornalismo goza de um baita espaço na TV pública, ou seja, financiada com o dinheiro de todos os argentinos, governistas, oposicionistas ou neutros, para difundir ataques aos adversários do governo ou simplesmente críticos.
A confrontação entre o governo e parte da mídia não é o único ponto de crispação. Dois outros, que ocupam a capa de "La Nación" nesta quinta-feira:
1 - O governador de Santa Cruz, a Província que é o berço dos Kirchner e feudo absoluto deles há muitos anos, está desafiando a Corte Suprema, ao se recusar a repor no cargo o procurador-geral Eduardo Sosa, demitido por Kirchner, então governador, já faz 15 anos.
Decisão de Corte Suprema se cumpre, em qualquer país civilizado. Na Argentina de hoje, o chefe de Gabinete de Kirchner, Aníbal Fernández, acha que a sentença do tribunal supremo "é de impossível cumprimento".
Aliás, Fernández fez a declaração no dia em que compareceu ao Congresso para uma prestação de contas que a Constituição manda fazer a cada dois meses (boa ideia essa, hein). Até agora, nove meses do anos transcorridos, a exposição não havia sido feita.
Parte da oposição se retirou em protesto contra trechos da exposição que, segundo o deputado Fernando "Pino" Solanas, mostrou um ministro "surdo e linguarudo".
Solanas, além ou acima de deputado, é um excelente cineasta.
Mais: deputados oposicionistas recusaram-se até a estender a mão para cumprimentar Fernández quando passava por suas cadeiras.
2 - Segundo "La Nación", a presidenta Cristina Kirchner estaria para dar o status de refugiado ao chileno Galvarino Apablaza Guerra, que foi integrante da Frente Patriótica Manuel Rodríguez, o braço armado do Partido Comunista Chileno.
Aí é a tal história: quando se pega em armas contra uma ditadura como a que houve no Chile tem-se o benefício de que é lícito, pelo direito internacional, lutar contra uma tirania insuportável.
Mas Guerra foi preso em 2004, quando o Chile (e a Argentina) há muito haviam deixado suas ditaduras para trás. Por isso, a Corte Suprema aprovou, na terça-feira, a extradição, que, no entanto, será evitada se a presidenta de fato lhe der o status de refugiado.
É óbvio que vai criar mais crispação não só com a Corte Suprema, mas também com o governo chileno.
Tudo somado, mesmo assim é sempre possível ver um lado positivo: ninguém está falando em golpe de Estado, ninguém está clamando por um. Para quem conhece o passado argentino, mesmo o recente, é para festejar com um belo 'bife de chorizo'.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.
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