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clóvis rossi

 

14/03/2011 - 18h18

O Japão, Fausto e o átomo

Geoffrey Lean, pioneiro na cobertura de assuntos ambientais (trabalha para o britânico "The Daily Telegraph") foi buscar na lenda de Fausto a sua inspiração para falar da crise nuclear no Japão, na esteira do terremoto/tsunami.

Lean, que tem prêmios por jornalismo investigativo, lembrou nesta segunda-feira que Alvin Weinberg, um dos pioneiros na expansão das usinas nucleares, advertira quando ela se iniciou, faz 40 anos mais ou menos, de que o mundo estava fazendo "uma barganha faustiana" com o átomo. Weinberg acreditava que pessoas como ele estavam fornecendo ao mundo "uma fonte energética mágica", praticamente não-poluente, quando devidamente gerenciada.

Mas a mágica vinha a um custo: o "da necessidade de vigilância [sobre os reatores], à qual não estamos acostumados".

Para quem não lembra ou não leu, Fausto é o protagonista de uma lenda alemã, transformada em obra-prima por Goethe em que um médico e alquimista faz um pacto com o demônio.

O pacto com o suposto demônio nuclear --lembra o jornalista britânico-- cobrou seu preço primeiro no acidente de Three Mile Island, faz 32 anos (tema de "Síndrome da China", filme estrelado por Jane Fonda), depois no de Chernobyl, na hoje Ucrânia, há 25 anos, e agora em Fukushima, Japão, cujo reator, aliás, saiu do Oak Ridge National Laboratory, dirigido por Weinberg.

Transfiro ao leitor a pergunta que Geoffrey Lean faz: "O suprimento de uma bem desenvolvida fonte de energia, de uso reduzido de carbono [o poluente carbono] vale o preço de um cataclisma que pode se seguir a um lapso humano na vigilância ou a um ato de Deus? O papel que [a energia nuclear] pode desempenhar em ajudar a evitar uma catástrofe quase certamente de lento desenrolar [alusão às mudanças climáticas] justifica o risco de um acidente calamitoso?"

Boa parte do mundo está se fazendo a pergunta de Lean, especialmente no próprio Japão, que tem 54 reatores nucleares em operação, o terceiro maior país em energia nuclear, atrás apenas de Estados Unidos e França.

Afinal, apesar de o Japão estar reconhecidamente bem preparado para lidar com terremotos e tsunamis, a extensão da devastação provocada pelo de sexta-feira serve como lembrança de como os países permanecem vulneráveis à calamidades em larga escala.

Escreve, por exemplo, outro veterano jornalista, Syed Fattahul Alim, pensando na sua pobre Bangladesh:

"A situação do Japão, que pertence ao grupo das nações mais ricas e mais tecnologicamente avançadas do mundo, fornece um clássico exemplo de como os humanos ainda estão desamparados em face da fúria da natureza".

É óbvio que diante dessa fúria, a "vigilância" que se exige sobre reatores nucleares fica no mínimo dificultada.

É por isso que há um intenso zumzum no planeta em torno de um eventual retrocesso no que antes de chamava de "renascença do nuclear".

Em teleconferência organizada nesta segunda-feira pelo Council on Foreign Relations, Michael Levy, pesquisador-sênior do Council para energia e meio-ambiente, dizia ser cedo demais para uma avaliação sobre a eventualidade do retrocesso.

Levy acredita que, por enquanto, o acidente no Japão confirmará cada lado em seu canto. Os que são contra a energia nuclear apontarão para o risco de acidentes; os que são a favor dirão que, mesmo em um acontecimento de imensa envergadura como o do Japão, há uma razoável contenção de danos (por enquanto, por enquanto).

O pesquisador acrescenta que a tal renascença do nuclear já vinha enfrentando outros problemas, que reduziram a sua velocidade, mas que ainda está por se ver se os problemas no Japão "causarão ou não uma mudança decisiva" nas escolhas energéticas nos países que usam a energia nuclear em larga escala.

Acho dispensável dizer que esse não é um assunto que diga respeito apenas aos amigos e aos inimigos do átomo: substituir a energia nuclear, se for o caso, tem implicações óbvias para as demais fontes energéticas, abrindo inclusive a hipótese de outro pacto faustiano, agora com os poluentes, invertendo a equação de 40 anos atrás.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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