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clóvis rossi

 

17/03/2011 - 16h07

Obama e o visto; Japão e "gambarimasu"

Meu amigo Saúl Galvão de França Júnior, crítico de gastronomia e enólogo, morto faz dois anos, costumava dizer que, se você precisa de mais de duas palavras para explicar o que faz na vida, certamente estará na próxima lista de demissões de sua empresa.

A sabedoria do bom Saúl aplica-se à perfeição à visita do presidente Barack Obama ao Brasil: se ele quer, como se diz, conectar-se com os brasileiros, basta uma palavra, visto. Claro que me refiro à abolição do visto para que brasileiros viajem aos Estados Unidos, com a inevitável reciprocidade.

Qualquer outro acordo, pronunciamento, promessa, etc., etc., etc., precisará de muito mais que duas palavras para serem traduzidos para o grande público --e assim mesmo com as interpretações contraditórias que já estão surgindo na preparação para a visita. Como diria o Saúl, a visita candidata-se, desse modo, não à demissão, inaplicável no caso, mas ao olvido rápido.

Visto, não. Eliminá-lo equipararia o brasileiro aos cidadãos europeus, por exemplo, que não precisam dele para entrar nos Estados Unidos. Em consequência, passaríamos a ser, na vida real, gente grande no relacionamento com Washington (na verdade, mais no relacionamento com a Flórida, se você me entende).

Seria medida do interesse dos próprios Estados Unidos. A "folha informativa" sobre o Brasil distribuída esta semana pela Casa Branca informa que cerca de 1 milhão de brasileiros visitaram os Estados Unidos em 2009 e gastaram lá algo em torno de US$ 4,5 bilhões. Não é pouco dinheiro mesmo para a maior economia do mundo.

O Departamento de Comércio calcula que até 2015 o Brasil se tornará o quinto maior fornecedor de turistas para os Estados Unidos, o que também não é pouca coisa, se se considerar que a renda per capita nestes trópicos não é exatamente a quinta maior do mundo.

É lógico supor que muitos mais poderiam viajar, não fosse a burocracia envolvida no pedido de visto. Aposto que todos e cada um dos leitores têm uma história a contar de parente (ou dele próprio) que teve problemas com visto para os EUA.

Até eu tenho, embora mantenha há séculos um relacionamento cordial com as autoridades diplomáticas norte-americanas e já tenha visitado o país por duas vezes a convite do governo.

Uma prima, que acabara de se formar em Comércio Exterior e já trabalhava na área, decidiu premiar-se com uma viagem de formatura aos Estados Unidos. O visto lhe foi negado, embora a documentação estivesse perfeita. Suspeito que a negativa se deu porque era jovem e viajaria sozinha, perfil que se encaixa na média dos que querem emigrar para os Estados Unidos, e não apenas fazer turismo.

Fiz uma gestão junto ao Consulado, mas não resolveu.

Eliminar o visto não significa eliminar também a possibilidade de controle. Cidadãos europeus, que não precisam de visto, devem, de todo modo, preencher eletronicamente antes da viagem um formulário indicando os dados básicos (número do passaporte, data da chegada, porto de entrada etc).

Simples, fácil, rápido. Quer dizer, simples, rápido e fácil quando funciona. Minha mais recente passagem pelos EUA foi complicada porque entrei com o passaporte italiano (a Itália ainda fica na Europa, por muito que Berlusconi se empenhe em deslocá-la para a Esbórnia). Preenchi o formulário mas ele não ficou registrado por algum "tilt" inexplicável.

Resultado: desembarquei em Washington, para trocar de avião rumo a Pittsburgh, e fui brecado na porta de entrada. Levado a um subterrâneo, fiquei na fila, ao lado de todos os suspeitos de sempre (jovens ou gente com feições latinas ou árabes). Nada que me incomodasse muito até porque havia bom espaço entre a chegada e o voo de conexão, mas deu para notar a aflição das brasileirinhas que caíram no mesmo subterrâneo, certamente vítimas do que os próprios norte-americanos chamam de "racial profiling", que se pode traduzir por seleção para investigação devido à raça ou cor.

Tudo somado, estou certo de que os brasileiros sentir-se-iam muito mais identificados com Obama se ele trouxesse na mala a liberação do visto do que se declarasse apoio à eterna pretensão brasileira de um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.

PS - Terminou minutos atrás uma teleconferência com Arturo Valenzuela, subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental, na qual a última pergunta foi justamente sobre a hipótese de a questão do visto entrar na pauta da visita.

Valenzuela disse que não sabia mas confirmou que se trata de um tema sobre o qual "há um diálogo em andamento" não só com o Brasil mas com outros países do mundo. Traduzindo: nada será anunciado durante a visita. Mas o tema continuará na agenda.

Mais notícias sobre o espírito japonês

Dado o interesse que parece despertar a situação no Japão, reproduzo abaixo, devidamente traduzido, o texto de Andrés Braun, publicado ontem pelo jornal espanhol "El País".

Combina muito com a "janela" da terça-feira sobre as lições que o Japão está dando mesmo no sofrimento.

"Gambarimasu é um dos verbos mais utilizados pelos japoneses. Pode-se usá-lo para si mesmo ou pode ser empregado para alentar os demais.

Poderia ser traduzido por perseverar ou por dar o melhor de si, embora seu verdadeiro e complexo significado transcenda essas acepções e condense parte do espírito coletivo da sociedade japonesa, que, nestes dias, assombra o mundo por sua integridade.

É um termo que conecta, por exemplo, com os valores de retidão, sacrifício ou entrega do 'bushido', o código samurai que se transmite de uma geração para outra e foi um pilar fundamental para cimentar o milagre japonês depois da 2ª Guerra Mundial.

Três décadas de crise não lograram que os japoneses deixassem de empregar esse vocábulo diariamente, e as informações que chegam estes dias das zonas mais afetadas pelo tsunami refletem esse espírito; falam de gente que fica em grandes filas para encher uma garrafa de água e que volta para colocar-se no fim da fila para encher uma segunda garrafa, ou de cidadãos que, apesar do medo, não querem abandonar a terra em que nasceram, viveram e na qual morrerão, se é o caso.

'O espírito militarista ainda está presente em muitas camadas da sociedade, embora, acima disso, os japoneses sejam uma gente tremendamente amável e com um enorme coração', comentava ao 'El País' Hisako Watanabe, psiquiatra da ala de pediatria do Hospital Universitário de Keio, em Tóquio, apenas duas semanas antes do terremoto.

O desenvolvimento durante séculos da harmonia (o chamado 'wa'), como elemento de coesão, fundamental para cultivar o arroz que alimentou durante séculos um país com pouco solo cultivável; a forte influência do confucionismo, que vê o indivíduo como um elemento social obrigado a cumprir uma função para a coletividade; ou a consistência grupal e as relações de codependência do Japão moderno podem servir para compreender parcialmente esse espírito.

Tanto quanto a história dos '47 ronin', evento do século 18 convertido em um dos grandes mitos nacionais. Trata de uma quadrilha samurai que esperou pacientemente para matar o responsável pela morte de seu senhor e se entregou voluntariamente às autoridades, antes de cometer 'seppuku' (o ritual do suicídio). Um relato de lealdade e sacrifício que traz à mente os 50 engenheiros que lutam para esfriar os reatores de Fukushima.

Em contrapartida, poucos podem dizer o mesmo dos líderes nipônicos. O governo de [Naoto] Kan, o primeiro-ministro, continua levantando dúvidas, e Shintaro Ishihara, polêmico escritor e governador de Tóquio, se exibiu segunda-feira tachando o tsunami de 'castigo divino'. Como já sucedeu no terremoto de 1995 em Kobe, o povo japonês está se mostrando muito superior a seus dirigentes e, nestes momentos, parece dizer a si próprio 'ganbaru Nihon' (ânimo, Japão)".

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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