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clóvis rossi
Complexo de culpa, Líbia e Alemanha
BERLIM - A Alemanha foi a única democracia ocidental, além do Brasil, a abster-se na votação do Conselho de Segurança das Nações Unidas que decretou a zona de exclusão aerea sobre a Líbia, o que implica em ataques militares às tropas do ditador Gaddafi.
Por isso, achei interessante tentar entender a posição alemã, aproveitando entrevista de seu vice-ministro de Relações Exteriores, Werner Hoyer, a um grupo de jornalistas estrangeiros convidados pelo governo para um seminário sobre a crise econômica europeia.
A explicação dá para entender mais do que a do Brasil, o que está longe de significar concordância. Qual foi o motivo principal da abstenção?
"Uma história de culpa, que nos faz entender a dimensão militar como absolutamente o último recurso", responde Hoyer.
Refere-se, se alguém aí se esqueceu, do remoto passado alemão de culpados pelas duas guerras mundiais do século passado e, por extensão, das atrocidades inerentes a uma guerra, qualquer guerra.
Essa foi a primeira explicação, mas não a única. A segunda: "Sabíamos que não estávamos em condições de participar de um esforço militar. Não fazia sentido, então, dar legitimidade a uma operação militar [legitimidade assegurada pela aprovação pelo Conselho de Segurança], quando, depois, seríamos chamados a participar e não poderíamos".
Antes, Hoyer dissera que a "dimensão militar" estava sendo sobredimensionada. Explicara também que a situação na Tunísia e no Egito ficara apagada pela ação militar contra Gaddafi, quando "há muita coisa a fazer até chegar a eleições livres e justas".
A proposta alemã, para esses países, faz todo o sentido e é parecida com a do Brasil, embora esta tenha sido pouco desenvolvida até agora.
Tratar-se-ia de "uma parceira para a transformação", assim descrita pelo Ministério alemão:
"A Alemanha quer dar uma contribuição para o desenvolvimento de partidos democráticos, para o diálogo sobre a vigência da lei, sobre a modernização do Judiciário, sobre o estabelecimento de um justo e transparente sistema eleitoral, sobre a promoção e o trabalho de uma mídia livre e independente".
O Brasil bem que poderia tomar idêntico caminho. E bem que seu ministro do Exterior, Antonio Patriota, poderia imitar o colega alemão, Guido Westerwelle, que já visitou tanto a Tunísia como o Cairo e aproveitou para ser fotografado na emblemática praça Tahrir.
Voltemos, no entanto, à Líbia. Ponderei a Hoyer que era perfeitamente compreensível as outras "dimensões" nos casos egípcios e tunisiano, posto que seus ditadores já haviam caído. Mas que outra "dimensão" há no caso líbio? Dialogar com Gaddafi?
O diplomata responde que é isso que o ditador quer. Acrescenta: "Mas seu tempo se acabou".
Então, o que a Alemanha propõe? "A caixa de ferramentas das sanções ainda não foi totalmente testada", responde, aludindo ao pacote aprovado antes, também pelo Conselho de Segurança (aí com o voto do Brasil) para tentar sufocar financeiramente o regime líbio.
Mas Hoyer acaba admitindo a diplomacia alemã teve que prender a respiração para não votar a proposta de zona de exclusão aerea, "porque o pleno efeito das sanções levaria mais tempo do que tínhamos", em óbvia alusão ao fato de que Gaddafi estava sitiando a capital informal dos rebeldes, Benghazi, e ameaçando um banho de sangue.
"Por isso, não dissemos não [às sanções]". Nem sim nem não, portanto, o que, a meu ver, não é o melhor caminho mesmo com sentimento de culpa por um passado que já está ficando remoto.
Hoyer fecha seus comentários com uma ironia: "Fico impressionado com o furor que certos líderes [ocidentais] descobrem agora que Gaddafi é um tirano".
Eu também fico, Hoyer, mas fico ainda mais impressionado com o fato de que outros líderes ainda não fizeram essa descoberta.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.
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